sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Olha para ti, mais sujo que este reflexo envidraçado onde tens que levar com a imagem que os outros vêem. Olha-me esses olhos ramificados de sangue, acentuados por uma negrura de luto que os cava nessa face enrodilhada. Olha-me como estás magro, como te desleixaste. Já nem a barba fazes. Achas-te um maltratado da vida e tudo tentas para encontrares a melhor maneira de seres uma ilustração de ti mesmo. Olha-me esse cabelo. Há quanto tempo não o cortas? Olha a maneira lenta e cansada como vais virando a face enquanto te contemplas a ti mesmo. Metes-te nojo. Essas orelhas enceradas, o nariz de onde se escapam pêlos, o pescoço encavado - tudo faz parecer que foste moldado para fazer uma piada. És ridículo.

Olha para ti, vê como és duro contigo mesmo. Vê as coisas que estás a dizer a ti mesmo enquanto te olhas ao espelho. Porque eu sou só o teu reflexo. Eu só digo o que tu vês. E tu, porque vês o que vês? Achas que é só por estares aqui que vês estas coisas? Não gostas da tua vida aqui, é? Estás cansado do que acontece? Achas que és o único com problemas? Será que não és tu a fonte dos teus próprios problemas? Ah, coitado de ti, que nunca te deixam fazer nada. Coitado de ti, sempre explorado, sempre injustiçado. Dão-te trabalho a mais, e por isso não podes ir cortar o cabelo. Forçam-te a compromissos que não queres assumir, e por isso não tens tempo para te alimentares como deve ser. Pobre de ti. É o Mundo, não é? É sempre o Mundo.

Olha para ti, e antes de mais ninguém, culpa-te a ti. A ti, e a esses olhos pisados, a essa boca mal disposta, a essa expressão de nojo. Olha para ti e vê se não mereces tudo. És tu quem está mal.

Mas estás a sorrir? Estás contente com o que vais fazer? Achas que vais encontrar alguma liberdade? Achas que por me deixares aqui sozinho vais abandonar a tua pele? Estou a ver. Queres escolher-te a ti mesmo em vez de me escolheres a mim. Queres deixar-me aqui preso ao vidro do espelho retrovisor. Então vai. Não faltarão outros clientes dispostos a passar a vida inteira a escutar-me.

"Desculpe, disse alguma coisa?"

"Não."

"Então já chegámos. É aqui o aeroporto. São 12 Euros, por favor."



Sem comentários:

Enviar um comentário