Dizem que os sábios empilham conhecimento. Na verdade, é o conhecimento que empilha sábios. Um a um, vai encavalitando uns nos outros, lentamente trilhando o rumo que leva até a algum céu de plenitude de entendimento. E sábios, no fundo, são todos. Torres, há-as a perder de vista. Todos os dias se constroem novas. E isto tanto para as torres metafóricas de conhecimento, como para as verdadeiras - aqueles edifícios gigantes onde se emprega quem tem muitos sábios às costas na sua torre. Como o senhor Carlos.
Vividos 70 anos, não se espera encontrar um corpo dorido e uma pele branca, enrugada, em mudanças. 70 anos de pele embatendo no ar não são prenúncio de trabalhos violentos. Violentos, se bem que não em requisitos físicos ou motores, mas pelo menos violentos porque requerem o próprio movimento a um corpo que já se espera imóvel. Um corpo que, ele mesmo, se deseja imóvel.
Senhor Carlos, como era conhecido pelos colegas, não esperava dos dias mais do que o seu fim. O regressar ao rés-do-chão de casa e sentar-se na poltrona pesava-lhe nos joelhos como o terminar de uma batalha. Uma batalha travada de esfregona e balde. Quando se fazem mudanças, a empresa orgulha-se de deixar o anterior espaço como se fosse novo, e o novo como se fosse um sonho. Pelo menos esse tinha sido o discurso que lhe fora feito na entrevista com o patrão. E durante esse tempo, o senhor Carlos só conseguia pensar: "mas que nó de gravata tão mal feito".
Limpezas. O emprego tipico de uma mulher de 40 anos é o único emprego possível para um velho alfaiate de 70 anos de idade, 80 anos no coração, 90 anos nas articulações dos braços, 100 anos nos joelhos, e um rotundo zero no banco. "O senhor não fez descontos", disseram-lhe na entrevista com o burocrata do Estado. E durante todo esse tempo, o senhor Carlos ainda só conseguir pensar "que nó de gravata mais mal feito".
Limpezas. Porque isto de ser velho, é do diabo. Mas tem os seus momentos. Como aquele em que trabalhava na torre Sul de um complexo de apartamentos. Vendo os últimos móveis daquele andar intermédio a serem levados para a torre Norte, localizada num alto mais acessível e de melhores vistas, o senhor Carlos deu por si de novo sozinho, apoiado nos débeis joelhos, cuidadosamente afagando cada aresta de um chão corrido de madeira. Numa tábua, pareceu-lhe ver um fio azul. Puxou-o, e seguiu-o com os olhos fuscos até um grande armário de parede que dominava a paisagem do quarto sem janelas. Entre os tremores das suas mãos e o suor do trabalho, correu as portas do armário e deparou-se com um fato poeirento, enchendo um cabide. Estava colocado e fechado como se um ser sem espessura ali estivesse oscilando do varão. Ninguém entendia porque não tinha sido levado. Talvez por ser demasiado velho, e já não ter uso.
Ninguém entenderia também quem visse o senhor Carlos lançar-se sobre a manga. Nela, por dentro, encontrou a marca que parecia esperar encontrar, e sorriu. Aquele fato tinha sido feito na sua antiga casa, entretanto falida, por mãos que poderiam até muito bem ter sido as suas. Em tempos, vestira os maiores nomes do espectáculo, da política e da vida social. Em tempos, mesmo sem usar fato, a sua mestria fora chamada Arte. Era um sábio da costura.
Só, sem ninguém por perto, o senhor Carlos achou naquele fato a sua dignidade perdida. Depois de tantos anos a vestir famosos com aquele fato, pela primeira vez pôde vesti-lo. E vestiu-o com tal velocidade que dir-se-ia que os seus joelhos tinham de novo 20 apaixonados anos. A gravata austera, azul e cinzenta, foi meticulosamente colocada à volta do pescoço, dobrada sobre si mesma, passada num laço, e acertada na perfeição. "Isto sim, é um nó de gravata bem feito".
Naquele momento, apesar de se achar um trabalhador fora de prazo num andar abandonado, o senhor Carlos era uma torre por si só.
Vividos 70 anos, não se espera encontrar um corpo dorido e uma pele branca, enrugada, em mudanças. 70 anos de pele embatendo no ar não são prenúncio de trabalhos violentos. Violentos, se bem que não em requisitos físicos ou motores, mas pelo menos violentos porque requerem o próprio movimento a um corpo que já se espera imóvel. Um corpo que, ele mesmo, se deseja imóvel.
Senhor Carlos, como era conhecido pelos colegas, não esperava dos dias mais do que o seu fim. O regressar ao rés-do-chão de casa e sentar-se na poltrona pesava-lhe nos joelhos como o terminar de uma batalha. Uma batalha travada de esfregona e balde. Quando se fazem mudanças, a empresa orgulha-se de deixar o anterior espaço como se fosse novo, e o novo como se fosse um sonho. Pelo menos esse tinha sido o discurso que lhe fora feito na entrevista com o patrão. E durante esse tempo, o senhor Carlos só conseguia pensar: "mas que nó de gravata tão mal feito".
Limpezas. O emprego tipico de uma mulher de 40 anos é o único emprego possível para um velho alfaiate de 70 anos de idade, 80 anos no coração, 90 anos nas articulações dos braços, 100 anos nos joelhos, e um rotundo zero no banco. "O senhor não fez descontos", disseram-lhe na entrevista com o burocrata do Estado. E durante todo esse tempo, o senhor Carlos ainda só conseguir pensar "que nó de gravata mais mal feito".
Limpezas. Porque isto de ser velho, é do diabo. Mas tem os seus momentos. Como aquele em que trabalhava na torre Sul de um complexo de apartamentos. Vendo os últimos móveis daquele andar intermédio a serem levados para a torre Norte, localizada num alto mais acessível e de melhores vistas, o senhor Carlos deu por si de novo sozinho, apoiado nos débeis joelhos, cuidadosamente afagando cada aresta de um chão corrido de madeira. Numa tábua, pareceu-lhe ver um fio azul. Puxou-o, e seguiu-o com os olhos fuscos até um grande armário de parede que dominava a paisagem do quarto sem janelas. Entre os tremores das suas mãos e o suor do trabalho, correu as portas do armário e deparou-se com um fato poeirento, enchendo um cabide. Estava colocado e fechado como se um ser sem espessura ali estivesse oscilando do varão. Ninguém entendia porque não tinha sido levado. Talvez por ser demasiado velho, e já não ter uso.
Ninguém entenderia também quem visse o senhor Carlos lançar-se sobre a manga. Nela, por dentro, encontrou a marca que parecia esperar encontrar, e sorriu. Aquele fato tinha sido feito na sua antiga casa, entretanto falida, por mãos que poderiam até muito bem ter sido as suas. Em tempos, vestira os maiores nomes do espectáculo, da política e da vida social. Em tempos, mesmo sem usar fato, a sua mestria fora chamada Arte. Era um sábio da costura.
Só, sem ninguém por perto, o senhor Carlos achou naquele fato a sua dignidade perdida. Depois de tantos anos a vestir famosos com aquele fato, pela primeira vez pôde vesti-lo. E vestiu-o com tal velocidade que dir-se-ia que os seus joelhos tinham de novo 20 apaixonados anos. A gravata austera, azul e cinzenta, foi meticulosamente colocada à volta do pescoço, dobrada sobre si mesma, passada num laço, e acertada na perfeição. "Isto sim, é um nó de gravata bem feito".
Naquele momento, apesar de se achar um trabalhador fora de prazo num andar abandonado, o senhor Carlos era uma torre por si só.
Sem comentários:
Enviar um comentário