segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Dizem que quando uma bala é disparada contra nós, o tempo congela. Mas os breves momentos em que a bala está em voo não chegam para serem tomadas decisões importantes. Decisões como se nos desviamos, ou se nos mantemos indolentes no seu caminho. Nos filmes há sempre um momento esticado pelos movimentos lentos que tomamos a sério. Quando somos nós na linha de fogo, no entanto, tudo é muito rápido. Especialmente se perdemos os breves instantes com analogias parvas sobre balas.

Senti-me alvejada no meio de uma forma de campo de tiro com um chão de tacos castanhos ridículos, uma imitação de madeira tão fraca como estas pessoas são uma imitação de outras pessoas a sério. E ele há balões, e felicidade circunstancial para dar e vender. Num Mundo com vestidos pespontados a cor-de-rosa, lenços vermelhos em lapelas compradas na Baixa, laços, flores no cabelo e música metálica artificial de orgão barato, a única coisa doce são os bolos. Bolos com os quais a noiva, alarve, uma saciada da vida, sujou o seu vestido branco imaculado. E que apropriado para ela, pensei eu.

Foi a noiva quem me alvejou. Quem diria que um ramo de flores poderia servir de bala. Pétalas estilhaçadas a meus pés, flores no meu colo - o instinto foi mais forte, e mais tempo não tive do que abrir os braços enquanto a bala penetrava rapidamente o meu regaço. Serão rosas, senhor? Apeteceu-me fazer o contrário. Fazer desaparecer as flores e mostrar pães para calar aquelas bocas hipócritas.

E num instante, sou fuzilada por todos os olhares, saudada por aplausos beligerantes e alguns gritos histéricos. Crianças ranhosas vestidas como adultos, e velhos babados como crianças, ficaram fascinados com o meu infortúnio. Viam-me com uma espécie de inveja e nojo, simultaneamente chorando e celebrando a minha queda.

"Olha só, foi a gaja das calças de ganga que apanhou o bouquet!"

Pelo menos nisso os filmes acertaram. Quando somos o centro das atenções, os risos dos outros soam distorcidos, as suas caras movimentam-se para dentro e para fora de um palco limitado pela nossa visão periférica, e tudo se passa em movimento lento. O que me chateia mesmo é não ter tido o discernimento para fazer a cena que tinha planeado. Pensei tantas vezes para dentro:

"Se vier na tua direcção, deixa-o cair e vira as costas."

E no momento em que ele veio... nada. Um gesto mecânico, dois braços estendidos, e euforia total. E esta gente toda em volta de mim. Apanhei as flores. Subitamente, sou mais uma deles. Já pertenço a este casamento. Até a noiva sorri para mim com o seu cabelo à homem, as suas bochechas distorcidas pelo riso desenhado, permanente e inexpressivo do dia. E o noivo pisca-me o olho. Apetece-me sorrir. Seria tão fácil integrar-me.

Não.

Eu não pertenço a este filme. Fui atingida, mas ainda não morri. Tal como no resto da vida, estou a mais no meio desta gente. Não serei a próxima a casar. Nem a seguinte, nem a outra, nem a que vem a seguir a esta. Prefiro o orgulho negro do meu Mundo solitário a este degradê de cor-de-rosa, entre o rosa porquinho e o rosa pele de solário, manchado de banalidade. Dirijo-me à noiva de ramo de flores em punho e, como um soldado tombado em batalha que dispara sobre o inimigo antes de suspirar num último fôlego, apago-lhe o sorriso da cara.

"Pega nisto, querida. Vais precisar para o próximo."



3 comentários:

  1. Eu não descreveria melhor a inadequação.

    O saber exacto que aquele não é o teu filme, as tuas personagens. O teu cenário.
    A inadequação é isso,esses breves momentos de dúvida, de aparente conforto. Esses breves momentos de ilusão.

    Mas já foste alvejado. Ou se não foste, pelo menos tens consciência da bala. E já não há nada fazer.

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  2. lololololololololololololololololol!
    Estou sem palavras...
    Felizmente a noiva tinha cabelo de homem, ufa, n era eu!

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  3. E o melhor de tudo é sem dúvida alguma ser alvejada até à morte, sentir vontade de expelir o sangue dos pulmões, e consegui-lo. Choose Life.

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