quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Pode dizer-se muito sobre uma pessoa pela forma como se comporta nas escadas rolantes.

Há aqueles que ficam parados, aguardando que a escada os leve, quer o caminho seja a subir, quer seja a descer. Dir-se-ia que são os resignados do destino. Na sua imobilidade, há os que mantêm o olhar fixo no chão, como se elaborando alguma reflexão tímida sobre os seus sapatos ou o mecanismo das escadas. Estes sempre me pareceram os que vivem de forma mais triste o seu caminho. Outros, ficam a olhar para o ar, e quase se pode imaginar que essa é uma outra defesa da timidez, apesar desses sempre terem horizontes mais largos e cenários mais amplos para contemplar. Ainda assim, em ambas as situações, as pessoas preferem fingir que não reparam em ninguém para que ninguém repare nelas. Depois, há ainda os mais atrevidos, que procuram contacto visual, e os descontraídos que misturam todas estas abordagens enquanto se espraiam com os cotovelos apoiados na borracha de apoio. E por certo acham-se o máximo, mas a verdade é que estão a ser arrastados tão passivamente como toda a gente em quem têm os olhos postos.

Depois, há os que caminham, provavelmente por pressa ou por necessitarem de se moverem, quer as escadas subam, quer desçam. Entre estes, há os que pedem licença para poderem passar à frente de todos os outros. Mais ou menos educados, esses não se resignam com a sua posição. Tentam chegar primeiro, apesar de irem para onde toda a gente vai. São os campeões distraídos. Depois, há os que de detêm pacientemente quando encontram um obstáculo na forma de uma pessoa do primeiro tipo - os parados. Por vergonha, desinteresse, ou seja pelo que for, à primeira barreira eles desistem, e deixam-se arrastar.

Dentro destes dois grandes grupos, os que ficam parados e os que andam, há alguns comportamentos mais raros, e talvez por isso interessantes. Primeiro, há os que misturam as duas abordagens: ora caminham, ora param; trilham alguns degraus, deixam-se levar noutros. Dir-se-ia que são indecisos. Mais ainda, há quem vá seguindo e lendo o jornal. Há quem vá caminhando de olhar posto na escada em sentido contrário, quase desejando a viagem inversa. Há quem siga sozinho, e há quem siga com outras pessoas. E, para estes últimos, há quem goste de viajar um degrau acima da companhia, e há quem goste de viajar um degrau abaixo. Há quem tenha cuidado excessivo a entrar e a sair da passadeira, quase com medo de se desequilibrar por causa da viagem. Há quem se aventure mesmo a caminhar dois degraus de uma só vez. São pessoas para quem o fim, e não o meio, é o principal. E há também os miúdos que acham engraçado descer por escadas que sobem e subir por escadas que descem. Só porque sim. Inconsequentemente.

Quanto a mim, não me encaixo em nenhum destes estilos. Não gosto de escadas rolantes. Eu subo pelo meu ritmo, pelo meu próprio pé, pelas escadas de pedra.

Passei a vida a fugir de fantasmas. Espíritos alojados à tona do pensamento tentam afogar-me com insinuações e sombras, aparições fogazes no canto de um olho. Tenho medo do escuro. Tenho medo das tábuas do soalho que rangem sem as pisar, do canto de um pássaro nocturno que me parece sempre o corvo companheiro da Morte. E penso que quem ali está é o espírito de antigos amores, de gente querida há tanto foragida, que vem para me tocar com os seus dedos gélidos, e dessa forma me deixarem a tremer. Porque ninguém melhor do que os mortos nos pode ensinar que a vida deve ser vivida com um nó no estômago... Ou talvez seja a própria Morte quem está finalmente ali, chegada de longe, cansada, sentada no meu sofá, mais como uma visita do que como um intruso. A Morte tem a chave de minha casa. E por isso não são poucas as vezes em que corro a acender as luzes, para com elas matar a Morte. Sinto sempre que a escuridão me observa, sinto que o vazio me provoca, sinto que o silêncio me ataca. A luz, como a grande armadura divina, protege-me. Reconforta-me. Mas também me desilude.

Porque afinal pior do que um destino mau é o destino nenhum. E quando as sombras não escondem monstros, quando o gelo e o terror teatral que me fazem percorrer correndo esta casa solitária não são mais do que um nevoeiro no meu entendimento, sinto-me desapontado. Sinto que a vida devia ser mais como o medo que antevejo. Sinto que a minha vida devia ser mais como o meu estômago cambaleante, quando, pelo canto da visão, detecta movimento fantasma. Sinto que a Morte afinal ainda não me veio ver porque ela sabe que em mim não há espólio suficiente para a enriquecer. Ela sabe. Ela vê-me. Ela observa-me. Ela compreende que a minha vida temida me faz correr, enquanto a minha vida real não tem mais valor do que a existência de um corpo acantonado à janela, fumando um cigarro. Amedrontado demais para me mover, olho as estrelas, absorvo a luz da Lua, e desejo como uma criança deseja uma prenda que quando voltar as costas à rua, e de novo enfrentar o escuro, esteja lá ela. Ela, o Amor. Ela, a Paixão. Ela, o Fascínio. Ela, a Maravilha. Ou até ela, a Morte. Mas não. É apenas ele. O Nada. É sempre ilusão de canto de olho.

E quando por vezes uma outra luz me ofusca a partir dos holofotes apressados de um carro a passar abaixo da janela, componho a minha postura, dou a sensação de ser de novo um homem sem medo. E por um instante imagino o que verá aquela pessoa para além do vidro da noite. Imagino se por acaso verá, pelo canto do olho, um homem nú fumando desajeitadamente na janela de um prédio. E compreendo que, na verdade, o único fantasma nesta casa sou eu.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Dizem que há mais nada do que tudo. Dizem que que o espaço entre átomos é maior do que o tamanho de cada átomo em si; que o espaço entre moléculas é maior do que a soma dos tamanhos dos átomos; que as ligações entre moléculas as mantêm a uma distância maior umas das outras do que todos os seus tamanhos juntos; que há mais espaço entre planetas do que o raio de um qualquer sol. Dizem que passa mais tempo num segundo entre movimentos do ponteiro do que o próprio tempo que o ponteiro demora a mover-se; que por muitos ramos tenham as árvores da floresta, há sempre mais espaços do que folhas; que por muitas que sejam as estrelas que furam o céu com a sua luz, a esfera celeste continua a ser um manto escuro.

E têm razão. Por muitas voltas que se dê ao problema, o Mundo é feito de vazios. Espaços em branco. Páginas por escrever. Panos de fundo genéricos. Desenhos em negativo. Hiatos. Lacunas.

And the things you can't remember
Tell the things you can't forget.

Por isso, dizem que devemos aproveitar o ócio, que devemos descansar, viver os momentos vazios da vida em pleno. E assim sentir-nos-emos em comunhão com o Universo oco. Dizem que existe algo de criativo na inacção, que se simplesmente pararmos quietos as ideias cair-nos-ão aos pés como pardais num campo de tiro, abatidos pela monotonia. Dizem que se baixarmos o ruído de fundo das actividades laboriosas com as quais nos entretemos de sol a sol, vamos ser capazes de nos escutar a nós mesmos a gritar desde o fundo das nossas memórias. E aí teremos a razão.

Eu, digo que não. Não quero a razão. Quando é tempo de parar e ficar em casa a reflectir, eu saio disparado e bato com a porta. Quando é tempo de abraçar o ócio como a um velho amigo chegado de viagem, eu dou-lhe um soco na face. Quando é tempo de abrandar, eu acelero, até na via da direita. Quando me contam uma verdade, eu passo-a de volta como uma mentira. As razões passivas mastigadas pelo intelecto pouco me dizem. O meu caminho sou eu que trilho com a força das minhas pernas, sou eu que escalo com as minhas mãos. Para abrir um caminho é preciso falhar, tornar a falhar, e falhar de novo; abrir túneis com dinamite onde antes só existia rocha. Não há estradas direitas nem troços pré-feitos nem nada que se faça bem por um desenho de régua e esquadro. Os caminhos lineares e as respostas que o silêncio nos traz não passam de soluções assépticas, laboratoriais, intocadas pela dura chapada na cara da realidade. É preciso espremer a vida de todas as maneiras possíveis para que ela brote alguma réstia de satisfação ou de gosto.

I can't get no satisfaction
'Cause I try and I try and I try and I try.

Dizem-me muitas coisas, e eu não acredito em nenhuma. Nem quando me pedem para navegar tranquilamente pelos enormes espaços vazios, pelos hiatos e pelas lacunas dos outros; que observe as florestas e os planetas e as estrelas, e veja quanta beleza deles radia. Não me peçam que me afaste; que me acalme; que relaxe. A minha vida é um universo em plena expansão, acelerando até ao abismo que está para além do infinito. E se há tempo que gosto de perder é apenas este, em que nestas linhas escrevo as crónicas do que será sempre o meu grande, eterno falhanço. Falhar é o maior prazer que há na vida.


Tudo o que me acontece de mal na vida é porque chego atrasado às coisas. A infância passou por mim enquanto estava distraído com televisões e jogos de computador. Falhei a adolescência querendo ser criança, perdendo-me na irresponsabilidade e nas perguntas. Falhei o começo da idade adulta querendo ser adolescente, buscando romances inocentes e procurando beijos em olhos que já haviam visto demasiado sexo. O tempo, para mim, foi sempre como a luz de uma estrela distante que só chega à Terra milénios após ter sido emitida. Passei a vida a correr atrás de estrelas.

E cresci, e envelheci, passando por anos sempre iguais, por oportunidades perdidas e outras nunca sequer começadas. Até que ela apareceu. As passadas escassas, os vestidos alegres, a pele delicada, o rosto sub-desenvolvido, a beleza de inocência perversa, e a expressão de Lolita. Ela não enganava ninguém. Quantos anos teria a menos que eu? Cinco, dez? O que é o tempo quando ninguém o conta? Era pouco mais que uma adolescente, e brilhava de intensidade no olhar. E por entre as curvas pubescentes do seu corpo tenro, eu fui queimando as etapas que desconhecera. Éramos irresponsáveis como crianças quando fazíamos amor em cemitérios, em casas de banho de supermercados, no meio de jantares de família. Éramos adolescentes idealistas nos beijos sôfregos trocados em tardes passadas em jardins, onde pelo meio de tantas conversas parecíamos querer descobrir um novo Mundo, uma nova ordem para as coisas. E éramos adultos à noite, em minha casa, quando ela mentia à mãe dizendo que estava em casa de uma amiga, fazia o jantar, lavava os pratos e o chão, depois chorava e dizia estarem ali fantasmas. E fumava descompassadamente. E por fim, mais calma, escrevia poemas com os quais me vinha acordar à cama. E fazíamos amor às quatro da manhã. Porque nenhuma outra altura do dia é mais propícia à intimidade da própria cama. E nesses momentos eu entendia que nela eu estava a vingar todas as fases do meu passado irremediavelmente perdido. O que eu não esperava é que essa sensação de chegar a tempo trouxesse um rasto amargo de antevisão do futuro, quase como se ao apanhar o tempo ele, cobardemente, de desmanchasse e revelasse logo tudo. E nesses momentos, eu sabia que iria perdê-la.

Perdi-a para os braços de outro porque cheguei tarde demais. Tal como me esqueci de viver cada uma das etapas da minha vida, esqueci-me de a viver a ela. Ironicamente, dizia-me ela, porque eu era demasiado adulto. Mas como pode ser adulto alguém que vive sempre aquém do seu tempo? Como poderia eu estar velho se todas as experiências que deixam rugas nos olhos e tremores nas mãos não me tinham ainda acontecido? Por isso mesmo, dizia-me ela, porque eu sou demasiado contido, demasiado sério, demasiado bem-comportado. O tempo foge-me, dizia ela, porque eu tento agarrá-lo. Porque eu exigo descer as escadas e tocar-lhe no ombro quando ele passa à minha porta. E assim, nunca me liberto de mim mesmo, nunca me guio senão pela consciência. Eu encontraria o tempo, dizia-me ela, se parasse de tentar. Só assim seria criativo. Só assim poderia vivê-la a ela. Eu encontrá-la-ia se começasse a beber e a fumar. É pelos maus hábitos, pelos vícios, que nos libertamos dos espartilhos da consciência e permitimo-nos ser verdadeiramente livres, livres, livres para imaginar e criar e entender a dimensão livre dos espaços que a razão não enche. Mas o meu mau hábito, o meu vício, dizia-lhe eu, era ela. Não havia espaço para outros na minha vida.

Perdi-a para os braços de outro porque cheguei tarde demais. O outro sabia vivê-la. Partilhava noites de álcool e tabaco em varandas e mesas de café. Só a minha cama não a perdeu. Como amantes que ficámos, perdemos os últimos traços de sanidade e contenção. E desfrutámos dos nossos corpos sem limites, sem pejo em deixar escapar aquilo que desejávamos sem sequer o confessar a nós mesmos. Num êxtase de paixão, nús e em cima da cama, ela disse-me plena de vergonha que fantasiava com o dia em que eu a usaria para trair alguém com quem estivesse comprometido. E repetiu-o. De cada vez que era formulada, a ideia parecia-lhe melhor. E afirmou saber que não era saudável, que não queria sequer que eu o fizesse. Mas que esse seria o pico do vício, a heroína do nosso amor sem limites. Todas as boas histórias exigem vítimas. E ela, a minha Lolita transformada em Diabo, queria um sacrifício, queria que lhe entregasse um cordeiro inocente, queria ver a minha moral esmagada pela nossa luxúria. Não lhe respondi. Mas nesse dia estabeleceu-se entre nós um pacto silencioso que foi selado com um beijo na testa e uma ausência de meses. Não mais a teria na minha cama até existir outra estrela na minha vida.

Estrelas, no céu, há muitas. Mas desde criança que foram poucas aquelas que eu conseguia fixar. E esta, esta era a mais brilhante de todas. Mais uma vez cheguei tarde, desta vez ao amor a sério. Porque sim, vivi paixão e luxúria suprema, mas agora estava apaixonado pela primeira vez. Logo agora, tão tarde. Tarde demais, talvez, porque eu tinha assinado um contrato para vender a alma ao Diabo. E como o Diabo o sentia, o cheirava! O Diabo começou a contactar-me todos os dias. A tentar diminuir o brilho da minha nova estrela. O Diabo detestou-a desde o início. Era demasiado adulta, tal como eu. Demasiado contida. Não chorava nem dizia poesia, nem usava vestidinhos como as Lolitas. Era como uma alma gémea para mim.

O Diabo, ao contrário de mim, estava sempre lá antes do tempo. O Diabo comandava o tempo, segredava ao ouvido do tempo o que iria acontecer a seguir. E talvez por isso eu tenha aguentado o seu choro e poesia, as suas constantes implosões, supernovas mais do que anunciadas cada vez que o tempo me dizia que eu iria perdê-la. Porque, apesar de tudo, ela foi a minha janela para o futuro. Ela ensinou-me o valor de me libertar de mim mesmo. E agora, eu queria fazê-lo, queria encontrar a minha inspiração e criar. Só que esse momento em que toda a minha criatividade se expandiria era demasiado sagrado para o dar ao Diabo. Não poderia ser desperdiçado com a impaciência de quem cresceu demasiado depressa. Esse momento era devido a quem me soubesse dar o seu tempo.

E por isso quando o Diabo me veio visitar a casa, um dia, de surpresa, apanhou-me de saída. Eu sabia que o Diabo estava por perto, que chegara para consumir o meu corpo e com isso reclamar a minha alma. E eu vi o Diabo ao fundo da rua. Mas ainda assim, como sempre, saí de mãos dadas com a estrela que agora iluminava a minha vida. Ainda assim, como sempre, agarrei-a pela cintura e beijei-a, tentando contar os segundos de perfeição que o toque do amor permite. Ainda assim, como recentemente tenho feito, acendi um cigarro e perdi-me no agudo bater do fumo no fundo dos pulmões. Imobilizando o fumo dentro de mim, fechei os olhos, e passei o cigarro a ela, à minha estrela, àquela com quem já não quero mais agarrar tempo nenhum. Apenas desfrutar do tempo que o tempo me dá. E juntos, seguimos o nosso caminho.

E neste pequeno gesto, na intimidade de uma resistência que se quebra, de uma barreira que se pula, eu traí o mesmo Diabo que queria que eu traísse a única luz de esperança na minha vida. Neste pequeno gesto, eu quebrei o contrato. E a minha alma, aprisionada pelo peso de chegar sempre tarde durante tanto tempo, estava agora solta para finalmente expressar toda a sua beleza e criatividade. E hoje a minha alma ascende junto com o fumo todas as noites, em direcção às estrelas.


sexta-feira, 12 de março de 2010

Eu não sabia o que me esperava quando pousei o pé no embarque. Só aí começou o entusiasmo do meu companheiro de viagem, que me lembrou o êxtase de uma criança a quem inocentemente será dado um prazer de adultos. O aeroporto transformou um jovem adulto, responsável, recatado, beato e tímido, num excesso de agitação, no "vai ser lindo!", no "mal posso esperar", no "vai ser tudo o que as portuguesas não fazem", no "vai ser logo na primeira noite". Algures a meio do voo, pegou na cruz que exibia pendente do pescoço, e que tanto escárnio da minha parte havia já merecido ao longo dos anos, beijou-a, e disse "lamento, mas o que vai acontecer nesta cidade não é para os teus olhos verem". Quando pus o pé no desembarque, já sabia muito bem o que me esperava.

"São cinquenta Euros por vinte minutos. É caro! Mas vou tentar negociar." E regressou à janela. Andámos mais de meia hora, olhando de janela em janela, despindo com o olhar a roupa que restava aos corpos plásticos humanos que tentavam provocar-nos. A princípio, fiquei fascinado. Era isto que eu procurava nesta cidade: a liberdade, o à-vontade com o corpo, com o mundano, a recusa da moral obsoleta e de tradicionalismos com cheiro a mofo. Tudo isso pareceu-me colado ao vidro das inúmeras janelas.

O menu estava todo ali à escolha. Mas um único prato lhe agradava. Loura, olhos azuis, face demasiado redonda, e roupa interior azul e preta. Dois homens tinham acabado de sair juntos. Mais três esperavam a sua vez. E ali, sorrindo enquanto se tentava expressar num inglês ordinário, o meu companheiro esqueceu-me. Ia entrando, a passos minúsculos, como que vertendo o seu corpo para o interior, até que a cortina roxa se fechou e nada escapava pelos lados senão alguma luz enferma.

Olhei para o relógio. Cinco minutos.

Esperei cinco minutos junto à janela, empurrado acima e abaixo da margem do canal pela multidão oscilante, em correntes intermitentes. Depois, preso pelo deboche mercantil, saturado pelos perfumes ostensivos, perdi-me pelas ruas perpendiculares ao canal, e encontrei assento na porta de uma Igreja antiga e redonda. Rodando o olhar em torno da minha posição, luzes vermelhas escapavam-se por detrás de figuras negras corpulentas em montras improvisadas de jaulas-janelas, insinuando-se e tocando-se da mesma forma mecânica e plástica com que os apetrechos e adereços sexuais se mostram nas lojas de recordações, desavergonhadamente exibidos mas timidamente descontextualizados.

Dez minutos.

Ali, preso no degrau que rejeito, portas meias com o prazer, senti-me rodeado por aquela que deveria ser a minha gente: as prostitutas, os boémios, os devassos, os drogados, os bêbados, e toda a demais escória do Mundo. E, no entanto, olhando-os nos olhos, senti-os tão mercantis como marinheiros em terra pilhada. Os olhos do lado de cá e do lado de lá da montra, quando se encontram, tornam difícil entender quem compra a quem, e se é o corpo ou a ilusão que se transacciona. E eu, traído pelo meu romantismo de vão de escada, vim procurar liberdade e encontrei uma outra espécie de prisão voluntária.

Quinze minutos.

Portas meias com uma catedral do etéreo, a catedral do mundano. De mãos dadas na paisagem, quase se diria que é aqui onde o céu e o inferno se tocam. Amsterdão é onde Deus vem divertir-se e o Diabo arrepender-se. Amsterdão é o sítio de onde tudo o que é humano emana. E longe, na terra onde nasci, febril por fervores ateus, maldigo esta união, bendigo o que é ordinário e renego todos os dias a Deus e à virtude. E lá, acho-me irmão desta multidão recorrendo ao carnal que corre em fileiras paralelas ao canal. Mas aqui olho a multidão e não me reconheço em ninguém. Poderia correr pelas ruas, olhando nos olhos e beijando na boca cada um deles. Não importaria. Não haveria alma onde me reconhecesse nem saliva que me saciasse. Eu estou no meio, e sentirei sempre esta revolta contra o local que cale metade do que sou, seja essa metade sagrada ou profana. Eu não sou irmão do Homem. Mas também não sou filho de Deus. Eu sou pai de mim mesmo. Eu sou um produto da minha própria imaginação.

Subitamente, sem grande capacidade de me deter, o degrau onde me sentava rodou e tornou-se num oratório. Vi-me ajoelhado, de olhar elevado para a figura numa cruz pendurada no topo da porta, para sempre tendo prazer no seu calvário. Cristo sado-masoquista, exibido numa igreja de rua de sexo. E, pela primeira vez desde que eu próprio era criança e ficava em êxtase quando era levado ao Mundo dos adultos, rezei. Traí tudo aquilo em que acredito, rezando.

Vinte minutos. Hora de voltar.

Encontrei-me com ele junto à mesma janela que se tinha coberto por uma cortina suspeita, reveladora na sua opacidade. "E pronto, já está", disse-me, mesmo perante a minha total indiferença e desinteresse. "Mas isto... só vinte minutos não dá para nada", insistiu, interessado em puxar-me para dentro da sua experiência. "E o pior é que ela nem quis fazer o que eu lhe pedi", acrescentava enquanto retomávamos o caminho. "E depois perde-se imenso tempo com conversa... e nem dá para chegar ao fim." Acelerei o passo. "Vinte minutos não dá para nada." Silêncio. "Mas tens que experimentar!" Silêncio.

"E tu, que fizeste entretanto?" Surpreendeu-me a minha incapacidade para lhe dizer a verdade. "Estive só ali à tua espera." Afinal, vinte minutos, para mim, deram para muito. Deram para descobrir um Mundo quase obsceno, de tão nú e pessoal, que me envergonha e do qual não quero falar. What happens in Amsterdam, stays in Amsterdam. E sempre pensei que ao dizer isto me estivesse a referir a sexo. Mas Amsterdão ensinou-me que há coisas bem mais vergonhosas do que foder.



segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Não sentes falta da solidão?

Da solidão, no sentido daquilo que havia antes de ti?

Sim.

Antes de ti não havia propriamente solidão, apenas outro tipo de companhia. Na verdade, sinto-me até mais sozinho. Sim, estás tu aqui comigo, mas porque encontrei uma vida em ti que nunca esperei ver em ninguém, afastei-me até do resto do Mundo. Queimei todas as pontes e afundei todos os barcos quando a minha ilha chocou com a tua. O que não me entristece. É apenas um facto.

Sim, mas o que te pergunto é se não sentes falta do tempo antes de mim. Eu sei que queres estar comigo e que não voltarias atrás. Mas não sentes saudades? Quanto muito, saudades da liberdade que vem com o facto de não termos responsabilidades para com ninguém especial.

Estou a ver. Mas mesmo assim, acho que não. Sabes, quando era miúdo achava que ia viver uma enorme vida, e por enorme vida queria dizer uma vida em que nunca sentiria saudades de nada, porque todos os momentos seriam melhores que os últimos. É claro que isso foi muito antes de entender que por vezes até de coisas que não gostamos temos saudades. Foi antes de saber que estamos sempre a rever o passado e a redesenhá-lo como queremos no presente. Saudade é saudade, sem juízo de valor.

Eu tenho. Eu tenho saudades do dia imediatamente anterior a ter-te conhecido. Sinto uma certa falta da incerteza da minha vida passada, e de ter motivos para ser revoltada e insatisfeita. Acho que havia algo de engraçado em poder dizer que não sabia exactamente o que era amar. Não me leves a mal, e acredita que eu prefiro estar contigo e não abriria mão de ti por nada. É só que agora, sinto que não tenho desculpa. Sinto que já não me posso queixar do Mundo nem da vida. Sinto esta pressão gigantesca para ser a mulher perfeita para ti porque tu és este homem lindo e forte e romântico, e tudo o que eu sempre disse que queria da vida. Agora sinto uma pressão gigantesca e uma necessidade de não desperdiçar a nossa vida sendo irresponsável e infantil.

Estou a ver o que queres dizer. E entendo. Às vezes sonho com o nosso encontro e o nosso primeiro dia e noite, e acordo a chorar de felicidade. E depois olho para ti, deitada ao meu lado, exactamente como eu desejei naquele dia, e mesmo assim sinto-me ligeiramente triste. Não porque me desiludas. Não porque não sejas o que esperava. Só porque a intensidade decai com o tempo. É irreversível. Às vezes apetece-me cometer loucuras, fugir a meio da noite quando acordo. Só para nos podermos encontrar seis meses depois em algum lado, e voltarmos a viver o nosso primeiro dia.

Se pudesses, manter-nos-ias só como aquele primeiro dia?

Não, porque isso seria impossível. As saudades seriam insuportáveis. Faria tudo para te encontrar.

Sentirias saudades minhas?

Sentiria sim.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Colocando as últimas calças na mala, comecei por fim a sentir o peso da decisão. Sabia que nunca me arrependeria, mas há vezes em que não é o arrependimento que pesa. A pressão que nos fixa os pés ao chão é a consciência de estarmos a desiludir as expectativas dos outros; é sabermos que estamos a rasgar um contrato, mas um contrato que eles próprios assinaram por nós.

Puxar para o lado o gelo fora da porta será bem mais fácil do que cortar o silêncio gelado com que me olham dentro desta casa. As gentes acumuladas faziam o soalho de madeira ranger, rivalizando o som aleatório com o coro de mulheres choramingando, enquanto os seus homens pressionavam com as mãos os seus ombros. E por toda a casa se soltavam vozes de desacordo. Perguntavam uns "o que vais fazer lá fora?", "o que pensas encontrar no meio do gelo?". Outros, em tom mais forte, afirmavam que "lá fora vais encontrar a tua morte", e que sou "o desgosto dos pais".

Mas eu não sou o primeiro. Recordo-me como miúdo de ter estado no meio da mesma multidão quando o meu irmão foi embora. Recordo-me de tê-lo visto na mesma posição onde eu estou agora, cuidadosamente a dobrar a roupa que metia na mala de cabedal castanho bem maior do que a minha. Recordo-me que os meus pais não se vieram despedir dele à porta, tal como hoje não se despedem de mim. Ele disse algo antes de sair que me perseguiu em todos os meus sonhos. Disse que "quando não encontramos o nosso lugar num espaço já feito, temos que ir para outro lugar e construir o nosso próprio espaço". E o terrível vazio que ele deixou nesta casa pequena nunca foi colmatado. Era ele quem me levava, enquanto os outros dormiam, para fora da porta, me pedia para não ter medo, me dizia que lá fora não havia nada que temer. Foi com ele que fiz o meu primeiro túnel pela neve e senti um ar diferente, desafogado na cara. É engraçado. Vivi toda a vida enclausurado pelo gelo, mas só quando escavei com ele até à superfície pude ver pela primeira vez nevar.

Naquele dia, era eu a partir. Mas o cenário é o mesmo. É o mesmo de cada vez que um de nós se aventura pelo meio da neve, sem saber o que encontrará. Já ninguém se lembra ao certo de quando terá a neve começado a cair. Talvez há duas, três gerações. Sabe-se que são já dezenas de metros de neve que nos separam da superfície. Sabe-se que esta casa foi construída para suster o peso do gelo e abrigar um grupo de pessoas que sobreviveram enterrados à neve contínua. Sabe-se que desde então, só um grupo de homens sai de casa para caçar e regressar com comida. Sabe-se que lá fora continua a nevar.

Apesar disso, naquele momento, algumas das mulheres continuavam a dizer-me que "a neve pode parar a qualquer momento", que "tudo vai melhorar em breve", e que então "teremos a nossa terra de volta". Gostava de lhes poder dizer que mesmo estando enterrado sem ver o sol, sem perspectivas que não sejam desejos, sem bem-estar que não seja resignação, ainda assim não é o meu carcereiro que me faz querer fugir desta prisão: são os meus companheiros de cela.

Por isso vesti o meu casaco, mesmo roto pelo passar do tempo. Recordei as viagens até à superfície que rotineiramente fazia com o meu irmão. E senti algo muito diferente. Esta viagem, é até ao fim. Voltei-me para a multidão, agrupada sobre o soalho da grande sala comum imediatamente junto da porta, e parei. Precisava de lhes dizer algo, mas não sabia bem o quê. De novo, as palavras do meu irmão assaltaram-me. E escaparam-se da minha boca, de uma forma muito mais cristalina do que ele algum dia sequer as pensou:

"A liberdade é a possibilidade de escolher a minha prisão."



domingo, 27 de dezembro de 2009

Subitamente encandeado por faróis máximos azuis, sinto-me fascinado como uma traça, atraído a dirigir-me para aquela luz forte. É assim com todos os carros que passam pelo meu, cada vez mais rápido, cada vez mais fluidos, e cada vez mais sedutores. Cada luz aumenta mais a minha sede por velocidade, a minha fome por sangue e metais quentes por colisão. E ela, o meu anjo, a minha sombra, sentada no banco de trás mas totalmente inclinada para cima do meu banco, põe os braços à minha volta e sussurra-me ao ouvido "acelera".

Por mim passam os carros espaçosos, último modelo de alta cilindrada comprada a crédito com taxas de juro acima dos 20%. Uma após outra, albergando as famílias que regressam do fim de semana passado no campo. A sagrada família: o marido, de penteado yuppy e roupa casualmente formal, olhando de lado para a mulher tipicamente portuguesa, horrível até nos óculos e deformada até no cabelo deslavado, enquanto grita com os meninos no banco de trás, as crianças irritantes e irritáveis, criaturas geradas pela classe média burguesa da Playstation portátil. A vida nesta gente morreu com os seus investimentos e os seus empréstimos e a sua vida planeada desde o tempo dos avós. E o meu anjo aperta o abraço, e por detrás daqueles lábios sujos de baton, surge apenas a palavra "vira".

Num gesto brusco, aproveito uma saída para uma longa curva, e regresso à pista que tinha acabado de fazer em sentido contrário. Bastam uns metros para escutar as buzinas, os carros a guinar, para ver as luzes a oscilarem em todas as direcções, amedrontadas, e para sentir o cheiro familiar de borracha queimada por travagens bruscas. É curioso. Um sinal vermelho de sentido proibido disse-me lá atrás que eu estou enganado; gritou-me na sua cor berrante que vou mal, que tenho que virar o mais rapidamente possível para o outro lado. Mas mesmo sabendo que tudo me indica que eu é que estou a ir ao contrário, vendo estas carrinhas familiares todas escoando no mesmo sentido, não posso deixar de sentir que sou eu que vou na direcção certa. Ainda que isso nos conduza à morte, ao sangue e ao metal quente pela colisão. A mim e ao meu anjo, que no banco de trás grita de satisfação. A satisfação que se sente ao sentir que estamos vivos. Nunca se sente tanto a vida como quando se está prestes a perdê-la.

O meu anjo salta para o banco da frente e beija-me. Fico sem ver as luzes que me atraiem, as famílias perfeitas que só desejo destruir para nunca ter que ocupar o lugar do motorista numa carrinha alongada, perfeita para acomodar o carrinho de bebé e os pacotes de fraldas e o cão e o gato. Fico sem ver, e o tempo alonga-se. As buzinas parecem transformar-se num contínuo. Os meus sentidos estão mais despertos, o beijo dela torna-se mais forte. As sensações misturam-se. À beira da morte, sinto-me um recém-nascido acabado de nascer, confundindo os dados dos sentidos. O meu anjo diz que me ama.

Talvez outro dia, quando esta luz se esgotar e já nada mais no Mundo houver senão escuridão comida por luzes de carros, e também para mim só existir a direcção da família perfeita, preferirei o sangue quente e o metal mortal. Por enquanto, esta é a luz que me move e me faz viver. Esta atracção por este anjo de luz fez-me aproveitar uma saída para retornar à direcção convencional, parar o carro, e dizer-lhe que a amo também. De um amor que nunca existirá em nenhuma carrinha familiar.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

"Esse é o problema das mulheres. Acham que os homens são todos iguais porque são completamente incapazes de prestar atenção a pormenores."

O gosto amargo de um café queimado e uma teoria barata, em troca daquele sorriso. O sorriso familiar que já vira em tantas mulheres. Parecia-lhe sempre ouvir nestes momentos um som de paredes a ruir. Eram as primeiras barreiras que se quebravam. Afinal, as mulheres são todas iguais.

"Mas os homens não são assim - nós sabemos que todos os seres humanos são únicos. E um homem é perfeitamente capaz de reconhecer em qualquer mulher o que a torna diferente de todas as outras. Não é a beleza, porque belezas há muitas, e é possível encontrar beleza em todo o lado. Também não são as ideias, porque a conversa torna-se sempre aborrecida ao fim de algum tempo. E também não é nada de primitivo, não é só um sentimento como paixão, amor ou luxúria, porque senão o próprio sentimento seria sempre igual. E não é. Cada mulher desperta uma sensação diferente num homem."

O sorriso transforma-se levemente num ângulo de pescoço, um ligeiro tombar de cabeça. É o segundo momento, a segunda parede que desaba. Ela já nem escuta exactamente o que ele diz, já não atribui significado às palavras que ele profere. As palavras já são só música. Ela simplesmente deixa-se permanecer na cadeira desconfortável, de tronco chegado à frente, cotovelos apoiados na mesa, pés cruzados atrás, e permite-lhe que a encante com a sua voz. Como a uma serpente.

"Quando digo que todas as mulheres são únicas, o que quero dizer é que cada uma sorri de uma maneira, e cada sorriso significa uma satisfação diferente. Quero dizer que cada uma se mexe de uma só maneira. Cada uma tira a roupa de uma só maneira. Cada uma diz-nos coisas ao ouvido na almofada que só ela diz. Tudo isso é um traço seu; é irrepetível e inimitável."

A última parede cai por completo quando ela decide falar, supostamente contrariando-o, mas unicamente dando-lhe mais uma possibilidade para brilhar; mais uma oportunidade para fazê-la vibrar.

"E é por isso que tu és um cabrão?"

"Se me quiseres chamar isso... sim, é. E repara, se as mulheres conseguissem ver isto com tanta clareza como os homens, seriam iguais. Não faz sentido estarmos sujeitos sempre aos mesmos gestos, às mesmas palavras, ao mesmo dia-a-dia, com uma só pessoa. Não faz sentido quando há todo um Mundo lá fora cheio de novidade e de experiências para viver com outros seres únicos."

Ela pega-lhe na mão. Vitória. Não ficou um único tijolo sobre tijolo. As mulheres são todas iguais.

"Tens razão. Conheces tão bem as mulheres, e as relações, e as pessoas... Deixas-me sem palavras."

"E então o que dizes à minha proposta?"

"Lamento, mas não. Sabes, eu sou apenas mais uma mulher. E a conclusão do que estás a dizer é que somos todas diferentes, mas ao mesmo tempo também somos todas igualmente incapazes de ver como seríamos mais felizes se fossemos mais soltas. Assim sendo, lamento, mas iria sentir-me muito mal por não ser capaz de te devolver essa lucidez."

"Ora, isso é conversa. Não tens que me devolver nada. Vem só comigo."
Quem diria que as paredes se erguem com a mesma velocidade com que se deitam abaixo. E foi com toda a graciosidade que, erguendo-se da mesa, vestindo o casaco e deixando dinheiro para pagar a sua bebida, ela colocou o ponto final na discussão.

"Não posso. Tu também és único, e para fazeres valer a tua ideia de vida e seres coerente... acho sinceramente que devias passar a querer estar com homens. Afinal, só outro homem verá o que há de único em ti. Para mim, vais ser sempre igual aos outros."



Caminhar é o movimento necessário para rodar a grande engrenagem do pensamento. Ao caminhar, chamo a mim todas as ideias e deixo que oscilem soltas no vazio gelado, como os meus braços oscilam no ar frio que me ultrapassa constantemente o corpo. A noite dos dias de semana, quando a vida pública se desfaz e os outros regressam ao privado escondido que se esforçam por não deixar descobrir, é a melhor altura para me dar a liberdade de escutar as minhas ideias mais profundas. Ideias que surgem ao som repetitivo e embalador dos meus passos.

Caminho à noite entre prédios semi-acesos de luzes por detrás de cortinas, rostos que por vezes se descobrem tão pensativos como eu, mas lá no alto. Caminho por ruas desertas, que como uma maré baixa solar se esvaziaram com o surgir da Lua. Caminho por entre carros esparsos com luzes tatuadas e barulhos profanos, aproveitando semáforos que mudam de cor para ninguém. Caminho por entre o ladrar ocasional de um cão, por entre o olhar vidrado de um gato perdido. As pedras da calçada, o afalto, as sarjetas - são o pano de fundo do meu olhar, o único horizonte que já espero alcansar. Já não vislumbro mais longe, nem tenho janela onde possa acender uma luz e mostrar a minha cara.

Sinto-me morador destas ruas. Prefiro a estrada ao conforto da cama. Os sem-abrigo desta cidade são os meus únicos vizinhos. As línguas estrangeiras de alguns cabelos louros que por vezes me aparecem ao caminho são a minha única música. Dedicaria a minha vida a caminhar se assim o pudesse. Iria ver outras ruas, outras calçadas, outras sarjetas, outros rostos nas janelas com ou sem cortinas. Iria até que as minhas solas se gastassem e já não soubesse articular uma única palavra sem ser para dentro. Correria cidade atrás de cidade, e de todas gostaria. Porque eu amo a cidade com a mesma violência com que odeio as pessoas que me levam a recolher-me de dia. A cidade é honesta. Quisera eu encontrar um lugar onde as pessoas também o fossem.

E continuo, esperando que algum dia a luz de uma janela me conduza a casa.