domingo, 27 de dezembro de 2009

Subitamente encandeado por faróis máximos azuis, sinto-me fascinado como uma traça, atraído a dirigir-me para aquela luz forte. É assim com todos os carros que passam pelo meu, cada vez mais rápido, cada vez mais fluidos, e cada vez mais sedutores. Cada luz aumenta mais a minha sede por velocidade, a minha fome por sangue e metais quentes por colisão. E ela, o meu anjo, a minha sombra, sentada no banco de trás mas totalmente inclinada para cima do meu banco, põe os braços à minha volta e sussurra-me ao ouvido "acelera".

Por mim passam os carros espaçosos, último modelo de alta cilindrada comprada a crédito com taxas de juro acima dos 20%. Uma após outra, albergando as famílias que regressam do fim de semana passado no campo. A sagrada família: o marido, de penteado yuppy e roupa casualmente formal, olhando de lado para a mulher tipicamente portuguesa, horrível até nos óculos e deformada até no cabelo deslavado, enquanto grita com os meninos no banco de trás, as crianças irritantes e irritáveis, criaturas geradas pela classe média burguesa da Playstation portátil. A vida nesta gente morreu com os seus investimentos e os seus empréstimos e a sua vida planeada desde o tempo dos avós. E o meu anjo aperta o abraço, e por detrás daqueles lábios sujos de baton, surge apenas a palavra "vira".

Num gesto brusco, aproveito uma saída para uma longa curva, e regresso à pista que tinha acabado de fazer em sentido contrário. Bastam uns metros para escutar as buzinas, os carros a guinar, para ver as luzes a oscilarem em todas as direcções, amedrontadas, e para sentir o cheiro familiar de borracha queimada por travagens bruscas. É curioso. Um sinal vermelho de sentido proibido disse-me lá atrás que eu estou enganado; gritou-me na sua cor berrante que vou mal, que tenho que virar o mais rapidamente possível para o outro lado. Mas mesmo sabendo que tudo me indica que eu é que estou a ir ao contrário, vendo estas carrinhas familiares todas escoando no mesmo sentido, não posso deixar de sentir que sou eu que vou na direcção certa. Ainda que isso nos conduza à morte, ao sangue e ao metal quente pela colisão. A mim e ao meu anjo, que no banco de trás grita de satisfação. A satisfação que se sente ao sentir que estamos vivos. Nunca se sente tanto a vida como quando se está prestes a perdê-la.

O meu anjo salta para o banco da frente e beija-me. Fico sem ver as luzes que me atraiem, as famílias perfeitas que só desejo destruir para nunca ter que ocupar o lugar do motorista numa carrinha alongada, perfeita para acomodar o carrinho de bebé e os pacotes de fraldas e o cão e o gato. Fico sem ver, e o tempo alonga-se. As buzinas parecem transformar-se num contínuo. Os meus sentidos estão mais despertos, o beijo dela torna-se mais forte. As sensações misturam-se. À beira da morte, sinto-me um recém-nascido acabado de nascer, confundindo os dados dos sentidos. O meu anjo diz que me ama.

Talvez outro dia, quando esta luz se esgotar e já nada mais no Mundo houver senão escuridão comida por luzes de carros, e também para mim só existir a direcção da família perfeita, preferirei o sangue quente e o metal mortal. Por enquanto, esta é a luz que me move e me faz viver. Esta atracção por este anjo de luz fez-me aproveitar uma saída para retornar à direcção convencional, parar o carro, e dizer-lhe que a amo também. De um amor que nunca existirá em nenhuma carrinha familiar.

3 comentários:

  1. "A satisfação que se sente ao sentir que estamos vivos. Nunca se sente tanto a vida como quando se está prestes a perdê-la."

    É por isso que tentá-la é tão sedutor.
    E é por isso que sempre achei que muitas suícidas só querem verdadeiramente viver.

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  2. ... provavelmente porque a vida que se tem nos parece sempre insuficiente, excepto no seu limite.

    Obrigado pelos comentários. :)

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  3. So fucking intense! God... Thank you.

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