quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Pode dizer-se muito sobre uma pessoa pela forma como se comporta nas escadas rolantes.

Há aqueles que ficam parados, aguardando que a escada os leve, quer o caminho seja a subir, quer seja a descer. Dir-se-ia que são os resignados do destino. Na sua imobilidade, há os que mantêm o olhar fixo no chão, como se elaborando alguma reflexão tímida sobre os seus sapatos ou o mecanismo das escadas. Estes sempre me pareceram os que vivem de forma mais triste o seu caminho. Outros, ficam a olhar para o ar, e quase se pode imaginar que essa é uma outra defesa da timidez, apesar desses sempre terem horizontes mais largos e cenários mais amplos para contemplar. Ainda assim, em ambas as situações, as pessoas preferem fingir que não reparam em ninguém para que ninguém repare nelas. Depois, há ainda os mais atrevidos, que procuram contacto visual, e os descontraídos que misturam todas estas abordagens enquanto se espraiam com os cotovelos apoiados na borracha de apoio. E por certo acham-se o máximo, mas a verdade é que estão a ser arrastados tão passivamente como toda a gente em quem têm os olhos postos.

Depois, há os que caminham, provavelmente por pressa ou por necessitarem de se moverem, quer as escadas subam, quer desçam. Entre estes, há os que pedem licença para poderem passar à frente de todos os outros. Mais ou menos educados, esses não se resignam com a sua posição. Tentam chegar primeiro, apesar de irem para onde toda a gente vai. São os campeões distraídos. Depois, há os que de detêm pacientemente quando encontram um obstáculo na forma de uma pessoa do primeiro tipo - os parados. Por vergonha, desinteresse, ou seja pelo que for, à primeira barreira eles desistem, e deixam-se arrastar.

Dentro destes dois grandes grupos, os que ficam parados e os que andam, há alguns comportamentos mais raros, e talvez por isso interessantes. Primeiro, há os que misturam as duas abordagens: ora caminham, ora param; trilham alguns degraus, deixam-se levar noutros. Dir-se-ia que são indecisos. Mais ainda, há quem vá seguindo e lendo o jornal. Há quem vá caminhando de olhar posto na escada em sentido contrário, quase desejando a viagem inversa. Há quem siga sozinho, e há quem siga com outras pessoas. E, para estes últimos, há quem goste de viajar um degrau acima da companhia, e há quem goste de viajar um degrau abaixo. Há quem tenha cuidado excessivo a entrar e a sair da passadeira, quase com medo de se desequilibrar por causa da viagem. Há quem se aventure mesmo a caminhar dois degraus de uma só vez. São pessoas para quem o fim, e não o meio, é o principal. E há também os miúdos que acham engraçado descer por escadas que sobem e subir por escadas que descem. Só porque sim. Inconsequentemente.

Quanto a mim, não me encaixo em nenhum destes estilos. Não gosto de escadas rolantes. Eu subo pelo meu ritmo, pelo meu próprio pé, pelas escadas de pedra.

Passei a vida a fugir de fantasmas. Espíritos alojados à tona do pensamento tentam afogar-me com insinuações e sombras, aparições fogazes no canto de um olho. Tenho medo do escuro. Tenho medo das tábuas do soalho que rangem sem as pisar, do canto de um pássaro nocturno que me parece sempre o corvo companheiro da Morte. E penso que quem ali está é o espírito de antigos amores, de gente querida há tanto foragida, que vem para me tocar com os seus dedos gélidos, e dessa forma me deixarem a tremer. Porque ninguém melhor do que os mortos nos pode ensinar que a vida deve ser vivida com um nó no estômago... Ou talvez seja a própria Morte quem está finalmente ali, chegada de longe, cansada, sentada no meu sofá, mais como uma visita do que como um intruso. A Morte tem a chave de minha casa. E por isso não são poucas as vezes em que corro a acender as luzes, para com elas matar a Morte. Sinto sempre que a escuridão me observa, sinto que o vazio me provoca, sinto que o silêncio me ataca. A luz, como a grande armadura divina, protege-me. Reconforta-me. Mas também me desilude.

Porque afinal pior do que um destino mau é o destino nenhum. E quando as sombras não escondem monstros, quando o gelo e o terror teatral que me fazem percorrer correndo esta casa solitária não são mais do que um nevoeiro no meu entendimento, sinto-me desapontado. Sinto que a vida devia ser mais como o medo que antevejo. Sinto que a minha vida devia ser mais como o meu estômago cambaleante, quando, pelo canto da visão, detecta movimento fantasma. Sinto que a Morte afinal ainda não me veio ver porque ela sabe que em mim não há espólio suficiente para a enriquecer. Ela sabe. Ela vê-me. Ela observa-me. Ela compreende que a minha vida temida me faz correr, enquanto a minha vida real não tem mais valor do que a existência de um corpo acantonado à janela, fumando um cigarro. Amedrontado demais para me mover, olho as estrelas, absorvo a luz da Lua, e desejo como uma criança deseja uma prenda que quando voltar as costas à rua, e de novo enfrentar o escuro, esteja lá ela. Ela, o Amor. Ela, a Paixão. Ela, o Fascínio. Ela, a Maravilha. Ou até ela, a Morte. Mas não. É apenas ele. O Nada. É sempre ilusão de canto de olho.

E quando por vezes uma outra luz me ofusca a partir dos holofotes apressados de um carro a passar abaixo da janela, componho a minha postura, dou a sensação de ser de novo um homem sem medo. E por um instante imagino o que verá aquela pessoa para além do vidro da noite. Imagino se por acaso verá, pelo canto do olho, um homem nú fumando desajeitadamente na janela de um prédio. E compreendo que, na verdade, o único fantasma nesta casa sou eu.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Dizem que há mais nada do que tudo. Dizem que que o espaço entre átomos é maior do que o tamanho de cada átomo em si; que o espaço entre moléculas é maior do que a soma dos tamanhos dos átomos; que as ligações entre moléculas as mantêm a uma distância maior umas das outras do que todos os seus tamanhos juntos; que há mais espaço entre planetas do que o raio de um qualquer sol. Dizem que passa mais tempo num segundo entre movimentos do ponteiro do que o próprio tempo que o ponteiro demora a mover-se; que por muitos ramos tenham as árvores da floresta, há sempre mais espaços do que folhas; que por muitas que sejam as estrelas que furam o céu com a sua luz, a esfera celeste continua a ser um manto escuro.

E têm razão. Por muitas voltas que se dê ao problema, o Mundo é feito de vazios. Espaços em branco. Páginas por escrever. Panos de fundo genéricos. Desenhos em negativo. Hiatos. Lacunas.

And the things you can't remember
Tell the things you can't forget.

Por isso, dizem que devemos aproveitar o ócio, que devemos descansar, viver os momentos vazios da vida em pleno. E assim sentir-nos-emos em comunhão com o Universo oco. Dizem que existe algo de criativo na inacção, que se simplesmente pararmos quietos as ideias cair-nos-ão aos pés como pardais num campo de tiro, abatidos pela monotonia. Dizem que se baixarmos o ruído de fundo das actividades laboriosas com as quais nos entretemos de sol a sol, vamos ser capazes de nos escutar a nós mesmos a gritar desde o fundo das nossas memórias. E aí teremos a razão.

Eu, digo que não. Não quero a razão. Quando é tempo de parar e ficar em casa a reflectir, eu saio disparado e bato com a porta. Quando é tempo de abraçar o ócio como a um velho amigo chegado de viagem, eu dou-lhe um soco na face. Quando é tempo de abrandar, eu acelero, até na via da direita. Quando me contam uma verdade, eu passo-a de volta como uma mentira. As razões passivas mastigadas pelo intelecto pouco me dizem. O meu caminho sou eu que trilho com a força das minhas pernas, sou eu que escalo com as minhas mãos. Para abrir um caminho é preciso falhar, tornar a falhar, e falhar de novo; abrir túneis com dinamite onde antes só existia rocha. Não há estradas direitas nem troços pré-feitos nem nada que se faça bem por um desenho de régua e esquadro. Os caminhos lineares e as respostas que o silêncio nos traz não passam de soluções assépticas, laboratoriais, intocadas pela dura chapada na cara da realidade. É preciso espremer a vida de todas as maneiras possíveis para que ela brote alguma réstia de satisfação ou de gosto.

I can't get no satisfaction
'Cause I try and I try and I try and I try.

Dizem-me muitas coisas, e eu não acredito em nenhuma. Nem quando me pedem para navegar tranquilamente pelos enormes espaços vazios, pelos hiatos e pelas lacunas dos outros; que observe as florestas e os planetas e as estrelas, e veja quanta beleza deles radia. Não me peçam que me afaste; que me acalme; que relaxe. A minha vida é um universo em plena expansão, acelerando até ao abismo que está para além do infinito. E se há tempo que gosto de perder é apenas este, em que nestas linhas escrevo as crónicas do que será sempre o meu grande, eterno falhanço. Falhar é o maior prazer que há na vida.


Tudo o que me acontece de mal na vida é porque chego atrasado às coisas. A infância passou por mim enquanto estava distraído com televisões e jogos de computador. Falhei a adolescência querendo ser criança, perdendo-me na irresponsabilidade e nas perguntas. Falhei o começo da idade adulta querendo ser adolescente, buscando romances inocentes e procurando beijos em olhos que já haviam visto demasiado sexo. O tempo, para mim, foi sempre como a luz de uma estrela distante que só chega à Terra milénios após ter sido emitida. Passei a vida a correr atrás de estrelas.

E cresci, e envelheci, passando por anos sempre iguais, por oportunidades perdidas e outras nunca sequer começadas. Até que ela apareceu. As passadas escassas, os vestidos alegres, a pele delicada, o rosto sub-desenvolvido, a beleza de inocência perversa, e a expressão de Lolita. Ela não enganava ninguém. Quantos anos teria a menos que eu? Cinco, dez? O que é o tempo quando ninguém o conta? Era pouco mais que uma adolescente, e brilhava de intensidade no olhar. E por entre as curvas pubescentes do seu corpo tenro, eu fui queimando as etapas que desconhecera. Éramos irresponsáveis como crianças quando fazíamos amor em cemitérios, em casas de banho de supermercados, no meio de jantares de família. Éramos adolescentes idealistas nos beijos sôfregos trocados em tardes passadas em jardins, onde pelo meio de tantas conversas parecíamos querer descobrir um novo Mundo, uma nova ordem para as coisas. E éramos adultos à noite, em minha casa, quando ela mentia à mãe dizendo que estava em casa de uma amiga, fazia o jantar, lavava os pratos e o chão, depois chorava e dizia estarem ali fantasmas. E fumava descompassadamente. E por fim, mais calma, escrevia poemas com os quais me vinha acordar à cama. E fazíamos amor às quatro da manhã. Porque nenhuma outra altura do dia é mais propícia à intimidade da própria cama. E nesses momentos eu entendia que nela eu estava a vingar todas as fases do meu passado irremediavelmente perdido. O que eu não esperava é que essa sensação de chegar a tempo trouxesse um rasto amargo de antevisão do futuro, quase como se ao apanhar o tempo ele, cobardemente, de desmanchasse e revelasse logo tudo. E nesses momentos, eu sabia que iria perdê-la.

Perdi-a para os braços de outro porque cheguei tarde demais. Tal como me esqueci de viver cada uma das etapas da minha vida, esqueci-me de a viver a ela. Ironicamente, dizia-me ela, porque eu era demasiado adulto. Mas como pode ser adulto alguém que vive sempre aquém do seu tempo? Como poderia eu estar velho se todas as experiências que deixam rugas nos olhos e tremores nas mãos não me tinham ainda acontecido? Por isso mesmo, dizia-me ela, porque eu sou demasiado contido, demasiado sério, demasiado bem-comportado. O tempo foge-me, dizia ela, porque eu tento agarrá-lo. Porque eu exigo descer as escadas e tocar-lhe no ombro quando ele passa à minha porta. E assim, nunca me liberto de mim mesmo, nunca me guio senão pela consciência. Eu encontraria o tempo, dizia-me ela, se parasse de tentar. Só assim seria criativo. Só assim poderia vivê-la a ela. Eu encontrá-la-ia se começasse a beber e a fumar. É pelos maus hábitos, pelos vícios, que nos libertamos dos espartilhos da consciência e permitimo-nos ser verdadeiramente livres, livres, livres para imaginar e criar e entender a dimensão livre dos espaços que a razão não enche. Mas o meu mau hábito, o meu vício, dizia-lhe eu, era ela. Não havia espaço para outros na minha vida.

Perdi-a para os braços de outro porque cheguei tarde demais. O outro sabia vivê-la. Partilhava noites de álcool e tabaco em varandas e mesas de café. Só a minha cama não a perdeu. Como amantes que ficámos, perdemos os últimos traços de sanidade e contenção. E desfrutámos dos nossos corpos sem limites, sem pejo em deixar escapar aquilo que desejávamos sem sequer o confessar a nós mesmos. Num êxtase de paixão, nús e em cima da cama, ela disse-me plena de vergonha que fantasiava com o dia em que eu a usaria para trair alguém com quem estivesse comprometido. E repetiu-o. De cada vez que era formulada, a ideia parecia-lhe melhor. E afirmou saber que não era saudável, que não queria sequer que eu o fizesse. Mas que esse seria o pico do vício, a heroína do nosso amor sem limites. Todas as boas histórias exigem vítimas. E ela, a minha Lolita transformada em Diabo, queria um sacrifício, queria que lhe entregasse um cordeiro inocente, queria ver a minha moral esmagada pela nossa luxúria. Não lhe respondi. Mas nesse dia estabeleceu-se entre nós um pacto silencioso que foi selado com um beijo na testa e uma ausência de meses. Não mais a teria na minha cama até existir outra estrela na minha vida.

Estrelas, no céu, há muitas. Mas desde criança que foram poucas aquelas que eu conseguia fixar. E esta, esta era a mais brilhante de todas. Mais uma vez cheguei tarde, desta vez ao amor a sério. Porque sim, vivi paixão e luxúria suprema, mas agora estava apaixonado pela primeira vez. Logo agora, tão tarde. Tarde demais, talvez, porque eu tinha assinado um contrato para vender a alma ao Diabo. E como o Diabo o sentia, o cheirava! O Diabo começou a contactar-me todos os dias. A tentar diminuir o brilho da minha nova estrela. O Diabo detestou-a desde o início. Era demasiado adulta, tal como eu. Demasiado contida. Não chorava nem dizia poesia, nem usava vestidinhos como as Lolitas. Era como uma alma gémea para mim.

O Diabo, ao contrário de mim, estava sempre lá antes do tempo. O Diabo comandava o tempo, segredava ao ouvido do tempo o que iria acontecer a seguir. E talvez por isso eu tenha aguentado o seu choro e poesia, as suas constantes implosões, supernovas mais do que anunciadas cada vez que o tempo me dizia que eu iria perdê-la. Porque, apesar de tudo, ela foi a minha janela para o futuro. Ela ensinou-me o valor de me libertar de mim mesmo. E agora, eu queria fazê-lo, queria encontrar a minha inspiração e criar. Só que esse momento em que toda a minha criatividade se expandiria era demasiado sagrado para o dar ao Diabo. Não poderia ser desperdiçado com a impaciência de quem cresceu demasiado depressa. Esse momento era devido a quem me soubesse dar o seu tempo.

E por isso quando o Diabo me veio visitar a casa, um dia, de surpresa, apanhou-me de saída. Eu sabia que o Diabo estava por perto, que chegara para consumir o meu corpo e com isso reclamar a minha alma. E eu vi o Diabo ao fundo da rua. Mas ainda assim, como sempre, saí de mãos dadas com a estrela que agora iluminava a minha vida. Ainda assim, como sempre, agarrei-a pela cintura e beijei-a, tentando contar os segundos de perfeição que o toque do amor permite. Ainda assim, como recentemente tenho feito, acendi um cigarro e perdi-me no agudo bater do fumo no fundo dos pulmões. Imobilizando o fumo dentro de mim, fechei os olhos, e passei o cigarro a ela, à minha estrela, àquela com quem já não quero mais agarrar tempo nenhum. Apenas desfrutar do tempo que o tempo me dá. E juntos, seguimos o nosso caminho.

E neste pequeno gesto, na intimidade de uma resistência que se quebra, de uma barreira que se pula, eu traí o mesmo Diabo que queria que eu traísse a única luz de esperança na minha vida. Neste pequeno gesto, eu quebrei o contrato. E a minha alma, aprisionada pelo peso de chegar sempre tarde durante tanto tempo, estava agora solta para finalmente expressar toda a sua beleza e criatividade. E hoje a minha alma ascende junto com o fumo todas as noites, em direcção às estrelas.