terça-feira, 24 de agosto de 2010

Tudo o que me acontece de mal na vida é porque chego atrasado às coisas. A infância passou por mim enquanto estava distraído com televisões e jogos de computador. Falhei a adolescência querendo ser criança, perdendo-me na irresponsabilidade e nas perguntas. Falhei o começo da idade adulta querendo ser adolescente, buscando romances inocentes e procurando beijos em olhos que já haviam visto demasiado sexo. O tempo, para mim, foi sempre como a luz de uma estrela distante que só chega à Terra milénios após ter sido emitida. Passei a vida a correr atrás de estrelas.

E cresci, e envelheci, passando por anos sempre iguais, por oportunidades perdidas e outras nunca sequer começadas. Até que ela apareceu. As passadas escassas, os vestidos alegres, a pele delicada, o rosto sub-desenvolvido, a beleza de inocência perversa, e a expressão de Lolita. Ela não enganava ninguém. Quantos anos teria a menos que eu? Cinco, dez? O que é o tempo quando ninguém o conta? Era pouco mais que uma adolescente, e brilhava de intensidade no olhar. E por entre as curvas pubescentes do seu corpo tenro, eu fui queimando as etapas que desconhecera. Éramos irresponsáveis como crianças quando fazíamos amor em cemitérios, em casas de banho de supermercados, no meio de jantares de família. Éramos adolescentes idealistas nos beijos sôfregos trocados em tardes passadas em jardins, onde pelo meio de tantas conversas parecíamos querer descobrir um novo Mundo, uma nova ordem para as coisas. E éramos adultos à noite, em minha casa, quando ela mentia à mãe dizendo que estava em casa de uma amiga, fazia o jantar, lavava os pratos e o chão, depois chorava e dizia estarem ali fantasmas. E fumava descompassadamente. E por fim, mais calma, escrevia poemas com os quais me vinha acordar à cama. E fazíamos amor às quatro da manhã. Porque nenhuma outra altura do dia é mais propícia à intimidade da própria cama. E nesses momentos eu entendia que nela eu estava a vingar todas as fases do meu passado irremediavelmente perdido. O que eu não esperava é que essa sensação de chegar a tempo trouxesse um rasto amargo de antevisão do futuro, quase como se ao apanhar o tempo ele, cobardemente, de desmanchasse e revelasse logo tudo. E nesses momentos, eu sabia que iria perdê-la.

Perdi-a para os braços de outro porque cheguei tarde demais. Tal como me esqueci de viver cada uma das etapas da minha vida, esqueci-me de a viver a ela. Ironicamente, dizia-me ela, porque eu era demasiado adulto. Mas como pode ser adulto alguém que vive sempre aquém do seu tempo? Como poderia eu estar velho se todas as experiências que deixam rugas nos olhos e tremores nas mãos não me tinham ainda acontecido? Por isso mesmo, dizia-me ela, porque eu sou demasiado contido, demasiado sério, demasiado bem-comportado. O tempo foge-me, dizia ela, porque eu tento agarrá-lo. Porque eu exigo descer as escadas e tocar-lhe no ombro quando ele passa à minha porta. E assim, nunca me liberto de mim mesmo, nunca me guio senão pela consciência. Eu encontraria o tempo, dizia-me ela, se parasse de tentar. Só assim seria criativo. Só assim poderia vivê-la a ela. Eu encontrá-la-ia se começasse a beber e a fumar. É pelos maus hábitos, pelos vícios, que nos libertamos dos espartilhos da consciência e permitimo-nos ser verdadeiramente livres, livres, livres para imaginar e criar e entender a dimensão livre dos espaços que a razão não enche. Mas o meu mau hábito, o meu vício, dizia-lhe eu, era ela. Não havia espaço para outros na minha vida.

Perdi-a para os braços de outro porque cheguei tarde demais. O outro sabia vivê-la. Partilhava noites de álcool e tabaco em varandas e mesas de café. Só a minha cama não a perdeu. Como amantes que ficámos, perdemos os últimos traços de sanidade e contenção. E desfrutámos dos nossos corpos sem limites, sem pejo em deixar escapar aquilo que desejávamos sem sequer o confessar a nós mesmos. Num êxtase de paixão, nús e em cima da cama, ela disse-me plena de vergonha que fantasiava com o dia em que eu a usaria para trair alguém com quem estivesse comprometido. E repetiu-o. De cada vez que era formulada, a ideia parecia-lhe melhor. E afirmou saber que não era saudável, que não queria sequer que eu o fizesse. Mas que esse seria o pico do vício, a heroína do nosso amor sem limites. Todas as boas histórias exigem vítimas. E ela, a minha Lolita transformada em Diabo, queria um sacrifício, queria que lhe entregasse um cordeiro inocente, queria ver a minha moral esmagada pela nossa luxúria. Não lhe respondi. Mas nesse dia estabeleceu-se entre nós um pacto silencioso que foi selado com um beijo na testa e uma ausência de meses. Não mais a teria na minha cama até existir outra estrela na minha vida.

Estrelas, no céu, há muitas. Mas desde criança que foram poucas aquelas que eu conseguia fixar. E esta, esta era a mais brilhante de todas. Mais uma vez cheguei tarde, desta vez ao amor a sério. Porque sim, vivi paixão e luxúria suprema, mas agora estava apaixonado pela primeira vez. Logo agora, tão tarde. Tarde demais, talvez, porque eu tinha assinado um contrato para vender a alma ao Diabo. E como o Diabo o sentia, o cheirava! O Diabo começou a contactar-me todos os dias. A tentar diminuir o brilho da minha nova estrela. O Diabo detestou-a desde o início. Era demasiado adulta, tal como eu. Demasiado contida. Não chorava nem dizia poesia, nem usava vestidinhos como as Lolitas. Era como uma alma gémea para mim.

O Diabo, ao contrário de mim, estava sempre lá antes do tempo. O Diabo comandava o tempo, segredava ao ouvido do tempo o que iria acontecer a seguir. E talvez por isso eu tenha aguentado o seu choro e poesia, as suas constantes implosões, supernovas mais do que anunciadas cada vez que o tempo me dizia que eu iria perdê-la. Porque, apesar de tudo, ela foi a minha janela para o futuro. Ela ensinou-me o valor de me libertar de mim mesmo. E agora, eu queria fazê-lo, queria encontrar a minha inspiração e criar. Só que esse momento em que toda a minha criatividade se expandiria era demasiado sagrado para o dar ao Diabo. Não poderia ser desperdiçado com a impaciência de quem cresceu demasiado depressa. Esse momento era devido a quem me soubesse dar o seu tempo.

E por isso quando o Diabo me veio visitar a casa, um dia, de surpresa, apanhou-me de saída. Eu sabia que o Diabo estava por perto, que chegara para consumir o meu corpo e com isso reclamar a minha alma. E eu vi o Diabo ao fundo da rua. Mas ainda assim, como sempre, saí de mãos dadas com a estrela que agora iluminava a minha vida. Ainda assim, como sempre, agarrei-a pela cintura e beijei-a, tentando contar os segundos de perfeição que o toque do amor permite. Ainda assim, como recentemente tenho feito, acendi um cigarro e perdi-me no agudo bater do fumo no fundo dos pulmões. Imobilizando o fumo dentro de mim, fechei os olhos, e passei o cigarro a ela, à minha estrela, àquela com quem já não quero mais agarrar tempo nenhum. Apenas desfrutar do tempo que o tempo me dá. E juntos, seguimos o nosso caminho.

E neste pequeno gesto, na intimidade de uma resistência que se quebra, de uma barreira que se pula, eu traí o mesmo Diabo que queria que eu traísse a única luz de esperança na minha vida. Neste pequeno gesto, eu quebrei o contrato. E a minha alma, aprisionada pelo peso de chegar sempre tarde durante tanto tempo, estava agora solta para finalmente expressar toda a sua beleza e criatividade. E hoje a minha alma ascende junto com o fumo todas as noites, em direcção às estrelas.


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