sexta-feira, 12 de março de 2010

Eu não sabia o que me esperava quando pousei o pé no embarque. Só aí começou o entusiasmo do meu companheiro de viagem, que me lembrou o êxtase de uma criança a quem inocentemente será dado um prazer de adultos. O aeroporto transformou um jovem adulto, responsável, recatado, beato e tímido, num excesso de agitação, no "vai ser lindo!", no "mal posso esperar", no "vai ser tudo o que as portuguesas não fazem", no "vai ser logo na primeira noite". Algures a meio do voo, pegou na cruz que exibia pendente do pescoço, e que tanto escárnio da minha parte havia já merecido ao longo dos anos, beijou-a, e disse "lamento, mas o que vai acontecer nesta cidade não é para os teus olhos verem". Quando pus o pé no desembarque, já sabia muito bem o que me esperava.

"São cinquenta Euros por vinte minutos. É caro! Mas vou tentar negociar." E regressou à janela. Andámos mais de meia hora, olhando de janela em janela, despindo com o olhar a roupa que restava aos corpos plásticos humanos que tentavam provocar-nos. A princípio, fiquei fascinado. Era isto que eu procurava nesta cidade: a liberdade, o à-vontade com o corpo, com o mundano, a recusa da moral obsoleta e de tradicionalismos com cheiro a mofo. Tudo isso pareceu-me colado ao vidro das inúmeras janelas.

O menu estava todo ali à escolha. Mas um único prato lhe agradava. Loura, olhos azuis, face demasiado redonda, e roupa interior azul e preta. Dois homens tinham acabado de sair juntos. Mais três esperavam a sua vez. E ali, sorrindo enquanto se tentava expressar num inglês ordinário, o meu companheiro esqueceu-me. Ia entrando, a passos minúsculos, como que vertendo o seu corpo para o interior, até que a cortina roxa se fechou e nada escapava pelos lados senão alguma luz enferma.

Olhei para o relógio. Cinco minutos.

Esperei cinco minutos junto à janela, empurrado acima e abaixo da margem do canal pela multidão oscilante, em correntes intermitentes. Depois, preso pelo deboche mercantil, saturado pelos perfumes ostensivos, perdi-me pelas ruas perpendiculares ao canal, e encontrei assento na porta de uma Igreja antiga e redonda. Rodando o olhar em torno da minha posição, luzes vermelhas escapavam-se por detrás de figuras negras corpulentas em montras improvisadas de jaulas-janelas, insinuando-se e tocando-se da mesma forma mecânica e plástica com que os apetrechos e adereços sexuais se mostram nas lojas de recordações, desavergonhadamente exibidos mas timidamente descontextualizados.

Dez minutos.

Ali, preso no degrau que rejeito, portas meias com o prazer, senti-me rodeado por aquela que deveria ser a minha gente: as prostitutas, os boémios, os devassos, os drogados, os bêbados, e toda a demais escória do Mundo. E, no entanto, olhando-os nos olhos, senti-os tão mercantis como marinheiros em terra pilhada. Os olhos do lado de cá e do lado de lá da montra, quando se encontram, tornam difícil entender quem compra a quem, e se é o corpo ou a ilusão que se transacciona. E eu, traído pelo meu romantismo de vão de escada, vim procurar liberdade e encontrei uma outra espécie de prisão voluntária.

Quinze minutos.

Portas meias com uma catedral do etéreo, a catedral do mundano. De mãos dadas na paisagem, quase se diria que é aqui onde o céu e o inferno se tocam. Amsterdão é onde Deus vem divertir-se e o Diabo arrepender-se. Amsterdão é o sítio de onde tudo o que é humano emana. E longe, na terra onde nasci, febril por fervores ateus, maldigo esta união, bendigo o que é ordinário e renego todos os dias a Deus e à virtude. E lá, acho-me irmão desta multidão recorrendo ao carnal que corre em fileiras paralelas ao canal. Mas aqui olho a multidão e não me reconheço em ninguém. Poderia correr pelas ruas, olhando nos olhos e beijando na boca cada um deles. Não importaria. Não haveria alma onde me reconhecesse nem saliva que me saciasse. Eu estou no meio, e sentirei sempre esta revolta contra o local que cale metade do que sou, seja essa metade sagrada ou profana. Eu não sou irmão do Homem. Mas também não sou filho de Deus. Eu sou pai de mim mesmo. Eu sou um produto da minha própria imaginação.

Subitamente, sem grande capacidade de me deter, o degrau onde me sentava rodou e tornou-se num oratório. Vi-me ajoelhado, de olhar elevado para a figura numa cruz pendurada no topo da porta, para sempre tendo prazer no seu calvário. Cristo sado-masoquista, exibido numa igreja de rua de sexo. E, pela primeira vez desde que eu próprio era criança e ficava em êxtase quando era levado ao Mundo dos adultos, rezei. Traí tudo aquilo em que acredito, rezando.

Vinte minutos. Hora de voltar.

Encontrei-me com ele junto à mesma janela que se tinha coberto por uma cortina suspeita, reveladora na sua opacidade. "E pronto, já está", disse-me, mesmo perante a minha total indiferença e desinteresse. "Mas isto... só vinte minutos não dá para nada", insistiu, interessado em puxar-me para dentro da sua experiência. "E o pior é que ela nem quis fazer o que eu lhe pedi", acrescentava enquanto retomávamos o caminho. "E depois perde-se imenso tempo com conversa... e nem dá para chegar ao fim." Acelerei o passo. "Vinte minutos não dá para nada." Silêncio. "Mas tens que experimentar!" Silêncio.

"E tu, que fizeste entretanto?" Surpreendeu-me a minha incapacidade para lhe dizer a verdade. "Estive só ali à tua espera." Afinal, vinte minutos, para mim, deram para muito. Deram para descobrir um Mundo quase obsceno, de tão nú e pessoal, que me envergonha e do qual não quero falar. What happens in Amsterdam, stays in Amsterdam. E sempre pensei que ao dizer isto me estivesse a referir a sexo. Mas Amsterdão ensinou-me que há coisas bem mais vergonhosas do que foder.



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