domingo, 27 de dezembro de 2009

Subitamente encandeado por faróis máximos azuis, sinto-me fascinado como uma traça, atraído a dirigir-me para aquela luz forte. É assim com todos os carros que passam pelo meu, cada vez mais rápido, cada vez mais fluidos, e cada vez mais sedutores. Cada luz aumenta mais a minha sede por velocidade, a minha fome por sangue e metais quentes por colisão. E ela, o meu anjo, a minha sombra, sentada no banco de trás mas totalmente inclinada para cima do meu banco, põe os braços à minha volta e sussurra-me ao ouvido "acelera".

Por mim passam os carros espaçosos, último modelo de alta cilindrada comprada a crédito com taxas de juro acima dos 20%. Uma após outra, albergando as famílias que regressam do fim de semana passado no campo. A sagrada família: o marido, de penteado yuppy e roupa casualmente formal, olhando de lado para a mulher tipicamente portuguesa, horrível até nos óculos e deformada até no cabelo deslavado, enquanto grita com os meninos no banco de trás, as crianças irritantes e irritáveis, criaturas geradas pela classe média burguesa da Playstation portátil. A vida nesta gente morreu com os seus investimentos e os seus empréstimos e a sua vida planeada desde o tempo dos avós. E o meu anjo aperta o abraço, e por detrás daqueles lábios sujos de baton, surge apenas a palavra "vira".

Num gesto brusco, aproveito uma saída para uma longa curva, e regresso à pista que tinha acabado de fazer em sentido contrário. Bastam uns metros para escutar as buzinas, os carros a guinar, para ver as luzes a oscilarem em todas as direcções, amedrontadas, e para sentir o cheiro familiar de borracha queimada por travagens bruscas. É curioso. Um sinal vermelho de sentido proibido disse-me lá atrás que eu estou enganado; gritou-me na sua cor berrante que vou mal, que tenho que virar o mais rapidamente possível para o outro lado. Mas mesmo sabendo que tudo me indica que eu é que estou a ir ao contrário, vendo estas carrinhas familiares todas escoando no mesmo sentido, não posso deixar de sentir que sou eu que vou na direcção certa. Ainda que isso nos conduza à morte, ao sangue e ao metal quente pela colisão. A mim e ao meu anjo, que no banco de trás grita de satisfação. A satisfação que se sente ao sentir que estamos vivos. Nunca se sente tanto a vida como quando se está prestes a perdê-la.

O meu anjo salta para o banco da frente e beija-me. Fico sem ver as luzes que me atraiem, as famílias perfeitas que só desejo destruir para nunca ter que ocupar o lugar do motorista numa carrinha alongada, perfeita para acomodar o carrinho de bebé e os pacotes de fraldas e o cão e o gato. Fico sem ver, e o tempo alonga-se. As buzinas parecem transformar-se num contínuo. Os meus sentidos estão mais despertos, o beijo dela torna-se mais forte. As sensações misturam-se. À beira da morte, sinto-me um recém-nascido acabado de nascer, confundindo os dados dos sentidos. O meu anjo diz que me ama.

Talvez outro dia, quando esta luz se esgotar e já nada mais no Mundo houver senão escuridão comida por luzes de carros, e também para mim só existir a direcção da família perfeita, preferirei o sangue quente e o metal mortal. Por enquanto, esta é a luz que me move e me faz viver. Esta atracção por este anjo de luz fez-me aproveitar uma saída para retornar à direcção convencional, parar o carro, e dizer-lhe que a amo também. De um amor que nunca existirá em nenhuma carrinha familiar.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

"Esse é o problema das mulheres. Acham que os homens são todos iguais porque são completamente incapazes de prestar atenção a pormenores."

O gosto amargo de um café queimado e uma teoria barata, em troca daquele sorriso. O sorriso familiar que já vira em tantas mulheres. Parecia-lhe sempre ouvir nestes momentos um som de paredes a ruir. Eram as primeiras barreiras que se quebravam. Afinal, as mulheres são todas iguais.

"Mas os homens não são assim - nós sabemos que todos os seres humanos são únicos. E um homem é perfeitamente capaz de reconhecer em qualquer mulher o que a torna diferente de todas as outras. Não é a beleza, porque belezas há muitas, e é possível encontrar beleza em todo o lado. Também não são as ideias, porque a conversa torna-se sempre aborrecida ao fim de algum tempo. E também não é nada de primitivo, não é só um sentimento como paixão, amor ou luxúria, porque senão o próprio sentimento seria sempre igual. E não é. Cada mulher desperta uma sensação diferente num homem."

O sorriso transforma-se levemente num ângulo de pescoço, um ligeiro tombar de cabeça. É o segundo momento, a segunda parede que desaba. Ela já nem escuta exactamente o que ele diz, já não atribui significado às palavras que ele profere. As palavras já são só música. Ela simplesmente deixa-se permanecer na cadeira desconfortável, de tronco chegado à frente, cotovelos apoiados na mesa, pés cruzados atrás, e permite-lhe que a encante com a sua voz. Como a uma serpente.

"Quando digo que todas as mulheres são únicas, o que quero dizer é que cada uma sorri de uma maneira, e cada sorriso significa uma satisfação diferente. Quero dizer que cada uma se mexe de uma só maneira. Cada uma tira a roupa de uma só maneira. Cada uma diz-nos coisas ao ouvido na almofada que só ela diz. Tudo isso é um traço seu; é irrepetível e inimitável."

A última parede cai por completo quando ela decide falar, supostamente contrariando-o, mas unicamente dando-lhe mais uma possibilidade para brilhar; mais uma oportunidade para fazê-la vibrar.

"E é por isso que tu és um cabrão?"

"Se me quiseres chamar isso... sim, é. E repara, se as mulheres conseguissem ver isto com tanta clareza como os homens, seriam iguais. Não faz sentido estarmos sujeitos sempre aos mesmos gestos, às mesmas palavras, ao mesmo dia-a-dia, com uma só pessoa. Não faz sentido quando há todo um Mundo lá fora cheio de novidade e de experiências para viver com outros seres únicos."

Ela pega-lhe na mão. Vitória. Não ficou um único tijolo sobre tijolo. As mulheres são todas iguais.

"Tens razão. Conheces tão bem as mulheres, e as relações, e as pessoas... Deixas-me sem palavras."

"E então o que dizes à minha proposta?"

"Lamento, mas não. Sabes, eu sou apenas mais uma mulher. E a conclusão do que estás a dizer é que somos todas diferentes, mas ao mesmo tempo também somos todas igualmente incapazes de ver como seríamos mais felizes se fossemos mais soltas. Assim sendo, lamento, mas iria sentir-me muito mal por não ser capaz de te devolver essa lucidez."

"Ora, isso é conversa. Não tens que me devolver nada. Vem só comigo."
Quem diria que as paredes se erguem com a mesma velocidade com que se deitam abaixo. E foi com toda a graciosidade que, erguendo-se da mesa, vestindo o casaco e deixando dinheiro para pagar a sua bebida, ela colocou o ponto final na discussão.

"Não posso. Tu também és único, e para fazeres valer a tua ideia de vida e seres coerente... acho sinceramente que devias passar a querer estar com homens. Afinal, só outro homem verá o que há de único em ti. Para mim, vais ser sempre igual aos outros."



Caminhar é o movimento necessário para rodar a grande engrenagem do pensamento. Ao caminhar, chamo a mim todas as ideias e deixo que oscilem soltas no vazio gelado, como os meus braços oscilam no ar frio que me ultrapassa constantemente o corpo. A noite dos dias de semana, quando a vida pública se desfaz e os outros regressam ao privado escondido que se esforçam por não deixar descobrir, é a melhor altura para me dar a liberdade de escutar as minhas ideias mais profundas. Ideias que surgem ao som repetitivo e embalador dos meus passos.

Caminho à noite entre prédios semi-acesos de luzes por detrás de cortinas, rostos que por vezes se descobrem tão pensativos como eu, mas lá no alto. Caminho por ruas desertas, que como uma maré baixa solar se esvaziaram com o surgir da Lua. Caminho por entre carros esparsos com luzes tatuadas e barulhos profanos, aproveitando semáforos que mudam de cor para ninguém. Caminho por entre o ladrar ocasional de um cão, por entre o olhar vidrado de um gato perdido. As pedras da calçada, o afalto, as sarjetas - são o pano de fundo do meu olhar, o único horizonte que já espero alcansar. Já não vislumbro mais longe, nem tenho janela onde possa acender uma luz e mostrar a minha cara.

Sinto-me morador destas ruas. Prefiro a estrada ao conforto da cama. Os sem-abrigo desta cidade são os meus únicos vizinhos. As línguas estrangeiras de alguns cabelos louros que por vezes me aparecem ao caminho são a minha única música. Dedicaria a minha vida a caminhar se assim o pudesse. Iria ver outras ruas, outras calçadas, outras sarjetas, outros rostos nas janelas com ou sem cortinas. Iria até que as minhas solas se gastassem e já não soubesse articular uma única palavra sem ser para dentro. Correria cidade atrás de cidade, e de todas gostaria. Porque eu amo a cidade com a mesma violência com que odeio as pessoas que me levam a recolher-me de dia. A cidade é honesta. Quisera eu encontrar um lugar onde as pessoas também o fossem.

E continuo, esperando que algum dia a luz de uma janela me conduza a casa.



quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

“No princípio...

No princípio...

No princípio era mais fácil.”

O princípio foi antes das enciclopédias, das televisões, dos telefones fixos e móveis, das comunicações fáceis, das viagens quotidianas, de distâncias entre países parecerem fazer-se como quilómetros, quilómetros como metros e metros serem já ali. Para si, esse foi o princípio de tudo. Uma pureza irrepetível. Um tempo invejável. De volta aos dias em que estava tudo ainda por inventar, isso é que era maneira de viver. Bastava reparar em algo que nunca ninguém tinha visto e escrevê-lo. E para ver algo que nunca ninguém tinha visto bastava afastarmo-nos um pouco de casa. E, na verdade, nem era preciso tanto. Bastava sermos o primeiro a escrever aquilo que ainda ninguém tinha tido tempo ou tenacidade suficiente para escrever. Escrever era um luxo, sim. Mas a recompensa da escrita era imensa e certa.

Mas e agora? De que se escreve? Todas as metáforas já foram formuladas, todas as personagens com interesse estão descritas, todas as histórias importantes e reveladoras da maneira como vivemos e somos já há muito tempo que se esgotaram. Passaram-se já fases de técnica, fases de falta de técnica, fases de pureza de língua e fases de adulteração das palavras. Para quê continuarmos a enganar-nos, pareceu-lhe, se afinal já se inventou tudo o que poderia ser inventado? Continuamos a olear uma máquina avariada, que só nos produz variações sobre grandes temas já batidos, massacrados, explorados intelectualmente e (porque não?) comercialmente até à exaustão. A literatura acabou. Morreu. Foi-se. Foi bom enquanto durou. Fez-nos crescer, fez-nos sonhar, fez-nos grandes. Mas estagnou porque está tudo feito, tudo visto. Hoje, a escrita arrasta-se penosamente por computadores , por papéis virtuais que nada mais fazem do que perpetuar a ilusão. Tanta tecnologia, e afinal a escrita é ela mesma uma tecnologia obsoleta. Quanto mais informação temos, menos importa a variedade e a diferença. Já não é possível ser original. A originalidade é tão conhecida, tão explicável e tão banal quanto outra coisa qualquer. Não, a fonte esgotou.

“Declaro unilateralmente o fim da literatura.”

Terminando de digitar esta curta frase, terminou com a postura reflectiva inclinada sobre a mesa, e recostou-se na cadeira, contente. O esgar revelador de uma brancura de dentes que sua mãe muito lhe gabava, e que portanto nunca se coibiu de mostrar, abria caminho para o interior de si. E esse era povoado pela mais rica sensação que conhecia: o prazer da descoberta.

“Declarar o fim da literatura... Aposto que nunca ninguém se lembrou desta. Agora só tenho que descobrir uma história onde pôr isto.”

E se é assim com a literatura, porque não com tudo o resto? A música, meu deus, como não se faz nada de novo há décadas! Onde estão as rupturas, os estilos, os movimentos artísticos? Desapareceram para sempre. Não voltarão nunca porque não podem voltar. Porque há limites para a variedade, para a diferença. Não há revolução que nos valha. Atingimos um patamar, um máximo, um expoente do qual não nos é possível soltar-nos. Chocámos com a cabeça no tecto de vidro da criatividade humana. E doeu-nos, não doeu?

“Se calhar tecto de vidro é má ideia para uma imagem. Bom, vou escrever tudo isto e já se pensa.”

E assim, estava concebida a sua ideia original, do seu pensamento último, do seu argumento definitivo, da sua história que domina todas as outras. O decretar do fim da literatura sairia... em livro.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Dizem que quando uma bala é disparada contra nós, o tempo congela. Mas os breves momentos em que a bala está em voo não chegam para serem tomadas decisões importantes. Decisões como se nos desviamos, ou se nos mantemos indolentes no seu caminho. Nos filmes há sempre um momento esticado pelos movimentos lentos que tomamos a sério. Quando somos nós na linha de fogo, no entanto, tudo é muito rápido. Especialmente se perdemos os breves instantes com analogias parvas sobre balas.

Senti-me alvejada no meio de uma forma de campo de tiro com um chão de tacos castanhos ridículos, uma imitação de madeira tão fraca como estas pessoas são uma imitação de outras pessoas a sério. E ele há balões, e felicidade circunstancial para dar e vender. Num Mundo com vestidos pespontados a cor-de-rosa, lenços vermelhos em lapelas compradas na Baixa, laços, flores no cabelo e música metálica artificial de orgão barato, a única coisa doce são os bolos. Bolos com os quais a noiva, alarve, uma saciada da vida, sujou o seu vestido branco imaculado. E que apropriado para ela, pensei eu.

Foi a noiva quem me alvejou. Quem diria que um ramo de flores poderia servir de bala. Pétalas estilhaçadas a meus pés, flores no meu colo - o instinto foi mais forte, e mais tempo não tive do que abrir os braços enquanto a bala penetrava rapidamente o meu regaço. Serão rosas, senhor? Apeteceu-me fazer o contrário. Fazer desaparecer as flores e mostrar pães para calar aquelas bocas hipócritas.

E num instante, sou fuzilada por todos os olhares, saudada por aplausos beligerantes e alguns gritos histéricos. Crianças ranhosas vestidas como adultos, e velhos babados como crianças, ficaram fascinados com o meu infortúnio. Viam-me com uma espécie de inveja e nojo, simultaneamente chorando e celebrando a minha queda.

"Olha só, foi a gaja das calças de ganga que apanhou o bouquet!"

Pelo menos nisso os filmes acertaram. Quando somos o centro das atenções, os risos dos outros soam distorcidos, as suas caras movimentam-se para dentro e para fora de um palco limitado pela nossa visão periférica, e tudo se passa em movimento lento. O que me chateia mesmo é não ter tido o discernimento para fazer a cena que tinha planeado. Pensei tantas vezes para dentro:

"Se vier na tua direcção, deixa-o cair e vira as costas."

E no momento em que ele veio... nada. Um gesto mecânico, dois braços estendidos, e euforia total. E esta gente toda em volta de mim. Apanhei as flores. Subitamente, sou mais uma deles. Já pertenço a este casamento. Até a noiva sorri para mim com o seu cabelo à homem, as suas bochechas distorcidas pelo riso desenhado, permanente e inexpressivo do dia. E o noivo pisca-me o olho. Apetece-me sorrir. Seria tão fácil integrar-me.

Não.

Eu não pertenço a este filme. Fui atingida, mas ainda não morri. Tal como no resto da vida, estou a mais no meio desta gente. Não serei a próxima a casar. Nem a seguinte, nem a outra, nem a que vem a seguir a esta. Prefiro o orgulho negro do meu Mundo solitário a este degradê de cor-de-rosa, entre o rosa porquinho e o rosa pele de solário, manchado de banalidade. Dirijo-me à noiva de ramo de flores em punho e, como um soldado tombado em batalha que dispara sobre o inimigo antes de suspirar num último fôlego, apago-lhe o sorriso da cara.

"Pega nisto, querida. Vais precisar para o próximo."



sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Olha para ti, mais sujo que este reflexo envidraçado onde tens que levar com a imagem que os outros vêem. Olha-me esses olhos ramificados de sangue, acentuados por uma negrura de luto que os cava nessa face enrodilhada. Olha-me como estás magro, como te desleixaste. Já nem a barba fazes. Achas-te um maltratado da vida e tudo tentas para encontrares a melhor maneira de seres uma ilustração de ti mesmo. Olha-me esse cabelo. Há quanto tempo não o cortas? Olha a maneira lenta e cansada como vais virando a face enquanto te contemplas a ti mesmo. Metes-te nojo. Essas orelhas enceradas, o nariz de onde se escapam pêlos, o pescoço encavado - tudo faz parecer que foste moldado para fazer uma piada. És ridículo.

Olha para ti, vê como és duro contigo mesmo. Vê as coisas que estás a dizer a ti mesmo enquanto te olhas ao espelho. Porque eu sou só o teu reflexo. Eu só digo o que tu vês. E tu, porque vês o que vês? Achas que é só por estares aqui que vês estas coisas? Não gostas da tua vida aqui, é? Estás cansado do que acontece? Achas que és o único com problemas? Será que não és tu a fonte dos teus próprios problemas? Ah, coitado de ti, que nunca te deixam fazer nada. Coitado de ti, sempre explorado, sempre injustiçado. Dão-te trabalho a mais, e por isso não podes ir cortar o cabelo. Forçam-te a compromissos que não queres assumir, e por isso não tens tempo para te alimentares como deve ser. Pobre de ti. É o Mundo, não é? É sempre o Mundo.

Olha para ti, e antes de mais ninguém, culpa-te a ti. A ti, e a esses olhos pisados, a essa boca mal disposta, a essa expressão de nojo. Olha para ti e vê se não mereces tudo. És tu quem está mal.

Mas estás a sorrir? Estás contente com o que vais fazer? Achas que vais encontrar alguma liberdade? Achas que por me deixares aqui sozinho vais abandonar a tua pele? Estou a ver. Queres escolher-te a ti mesmo em vez de me escolheres a mim. Queres deixar-me aqui preso ao vidro do espelho retrovisor. Então vai. Não faltarão outros clientes dispostos a passar a vida inteira a escutar-me.

"Desculpe, disse alguma coisa?"

"Não."

"Então já chegámos. É aqui o aeroporto. São 12 Euros, por favor."



quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Fomos caminhando pelo frio cortante, divididos em dois pela distância provocada pelas palavras gélidas com que nos magoávamos. As relações são mesmo assim. Ou pelo menos disso nos convencemos para justificar os nossos próprios falhanços. Mas continuámos a caminhar, lado a lado, na mesma direcção e no mesmo sentido, mas com a mente em sítios diferentes. A minha mente estava na dela, a dela em qualquer lugar menos neste. Entrámos no jardim. Eram cinco e meia.

"Não vejo que sentido faz arrastares-me para aqui quando isto fecha daqui a meia hora."

Paguei o bilhete e agarrei-lhe na mão, precipitando-nos para o interior. A mão dela queimava como o gelo. É o Inverno que se anuncia. Por esta altura do ano, o Sol põe-se agora, e a penumbra que se acerca trazia a hora perfeita para o que lhe queria mostrar. Corremos, como em outros momentos em que as diferenças eram virtudes, e até o que nos separava nos parecia engraçado; antes da noite ter caído dentro de nós.

"Pára imediatamente. Isto é ridículo. Diz-me de uma vez o que me queres dizer, ou deixa-me ir embora."

Arrastei-a mais uns metros, no jardim como naqueles penosos dias de fim de relação, de palavras amargas, de ressentimentos e cobranças que nos parece que nunca vão existir. Achamos sempre que doçura alguma se transforma em tamanho sal, que a ternura jamais poderia abrir feridas. Até ao dia em que acontece, e já tudo nos parece fora do lugar. E aí temos que correr. Correr na direcção da pessoa que nos fez feliz. Ou correr para longe da pessoa que nos magoa. Ambas são a mesma.

"Vou-me embora. Isto está quase a fechar."

"Mas nós já chegámos. Esquece a Lua, esquece o vento e o frio, esquece-me a mim. Sente-te apenas aqui, rodeada de coisas que não consegues ver. Este é o meu sítio preferido na cidade. É tão bonito, cheio de cores, cheio de sons, e cheio de alegria. Mas tudo isso, tu não podes sentir a esta hora. Só te podes sentir como se estivesses num buraco ou num poço, mas na verdade à frente dos teus olhos está um dos lugares mais bonitos que poderias ver.

Sabes, de noite todas as árvores são negras. Esperemos pela madrugada."



terça-feira, 15 de dezembro de 2009

"My plane leaves tomorrow." Subindo com o fumo do meu cigarro, a ideia é lançada para o ar e esfuma-se logo de seguida, dissipada pelo desinteresse abstraído no olhar dela. "I said... my plane leaves tomorrow, baby." Era sempre assim. O meu dramatismo crescente, ela afastava como ao olhar, e a tensão que eu provocava ela descarregava desfiando os problemas até deles não se ver mais ténues linhas arruinadas.

Ela era assim. Pegava-me pela mão para dançar. Mexia-se e encantava-me como uma serpente mexendo-se encanta o tocador de flauta. E eu, solto em gestos desconexos, preso num colete preto por cima de uma camisa encarnada como o vestido dela, seguia-a como podia, enganava-me enquanto me mantinha no encalço do seu ziguezague abrupto. E eu, sem largar o meu cigarro, abria os braços para tocá-la, sentia o espaço a mover-se à minha volta e ela sempre parada na minha referência interna, no meu olhar fixado, nos meus gestos de cópia. Mas ninguém a imita, ninguém consegue nem ousaria tanto.

Eram assim todas as noites. Parávamos apenas para beber, para fumar, para alimentar o que em nós secava a vida e rodopiava o tempo, numa espiral que engolia os tornados que fomos enquanto dançávamos. As noites passavam e esgotavam-se assim. Eu e ela, no meio de tantos outros corpos que se moviam, mas nenhum como o dela. As noites passavam, os dias enterravam-se dormindo, esperando pela noite. Não vim aqui para isto. Não meti os pés neste país para esta agitação. E o meu visto de visitante já espirou há meses. Não sei como me mantenho aqui, noite após noite, neste país distante, sem alternativas, sem perspectivas de regresso. Nada disto está tão longe de uma vida, e no entanto nada me fez nunca sentir tão vivo.

"Baby, my plane leaves tomorrow." Todas as noites, a noite acaba da mesma maneira. Os dois numa cama, mais preenchidos do que ao pôr-do-sol, mas estranhamente menos exaustos. Realimentados de vida. Encharcados pelas sensações inebriantes de um quotidiano irreal. "But baby, it really does."

E todas as noites antes de adormecer, não sei se ainda acordado ou já a dormir, misturado com os zumbidos da música alta que me moveu toda a noite, pareço escutar uma voz tão carregada e negra como o longo cabelo dela a dizer "you are never going back home".




segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Dizem que os sábios empilham conhecimento. Na verdade, é o conhecimento que empilha sábios. Um a um, vai encavalitando uns nos outros, lentamente trilhando o rumo que leva até a algum céu de plenitude de entendimento. E sábios, no fundo, são todos. Torres, há-as a perder de vista. Todos os dias se constroem novas. E isto tanto para as torres metafóricas de conhecimento, como para as verdadeiras - aqueles edifícios gigantes onde se emprega quem tem muitos sábios às costas na sua torre. Como o senhor Carlos.

Vividos 70 anos, não se espera encontrar um corpo dorido e uma pele branca, enrugada, em mudanças. 70 anos de pele embatendo no ar não são prenúncio de trabalhos violentos. Violentos, se bem que não em requisitos físicos ou motores, mas pelo menos violentos porque requerem o próprio movimento a um corpo que já se espera imóvel. Um corpo que, ele mesmo, se deseja imóvel.

Senhor Carlos, como era conhecido pelos colegas, não esperava dos dias mais do que o seu fim. O regressar ao rés-do-chão de casa e sentar-se na poltrona pesava-lhe nos joelhos como o terminar de uma batalha. Uma batalha travada de esfregona e balde. Quando se fazem mudanças, a empresa orgulha-se de deixar o anterior espaço como se fosse novo, e o novo como se fosse um sonho. Pelo menos esse tinha sido o discurso que lhe fora feito na entrevista com o patrão. E durante esse tempo, o senhor Carlos só conseguia pensar: "mas que nó de gravata tão mal feito".

Limpezas. O emprego tipico de uma mulher de 40 anos é o único emprego possível para um velho alfaiate de 70 anos de idade, 80 anos no coração, 90 anos nas articulações dos braços, 100 anos nos joelhos, e um rotundo zero no banco. "O senhor não fez descontos", disseram-lhe na entrevista com o burocrata do Estado. E durante todo esse tempo, o senhor Carlos ainda só conseguir pensar "que nó de gravata mais mal feito".

Limpezas. Porque isto de ser velho, é do diabo. Mas tem os seus momentos. Como aquele em que trabalhava na torre Sul de um complexo de apartamentos. Vendo os últimos móveis daquele andar intermédio a serem levados para a torre Norte, localizada num alto mais acessível e de melhores vistas, o senhor Carlos deu por si de novo sozinho, apoiado nos débeis joelhos, cuidadosamente afagando cada aresta de um chão corrido de madeira. Numa tábua, pareceu-lhe ver um fio azul. Puxou-o, e seguiu-o com os olhos fuscos até um grande armário de parede que dominava a paisagem do quarto sem janelas. Entre os tremores das suas mãos e o suor do trabalho, correu as portas do armário e deparou-se com um fato poeirento, enchendo um cabide. Estava colocado e fechado como se um ser sem espessura ali estivesse oscilando do varão. Ninguém entendia porque não tinha sido levado. Talvez por ser demasiado velho, e já não ter uso.

Ninguém entenderia também quem visse o senhor Carlos lançar-se sobre a manga. Nela, por dentro, encontrou a marca que parecia esperar encontrar, e sorriu. Aquele fato tinha sido feito na sua antiga casa, entretanto falida, por mãos que poderiam até muito bem ter sido as suas. Em tempos, vestira os maiores nomes do espectáculo, da política e da vida social. Em tempos, mesmo sem usar fato, a sua mestria fora chamada Arte. Era um sábio da costura.

Só, sem ninguém por perto, o senhor Carlos achou naquele fato a sua dignidade perdida. Depois de tantos anos a vestir famosos com aquele fato, pela primeira vez pôde vesti-lo. E vestiu-o com tal velocidade que dir-se-ia que os seus joelhos tinham de novo 20 apaixonados anos. A gravata austera, azul e cinzenta, foi meticulosamente colocada à volta do pescoço, dobrada sobre si mesma, passada num laço, e acertada na perfeição. "Isto sim, é um nó de gravata bem feito".

Naquele momento, apesar de se achar um trabalhador fora de prazo num andar abandonado, o senhor Carlos era uma torre por si só.