quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

“No princípio...

No princípio...

No princípio era mais fácil.”

O princípio foi antes das enciclopédias, das televisões, dos telefones fixos e móveis, das comunicações fáceis, das viagens quotidianas, de distâncias entre países parecerem fazer-se como quilómetros, quilómetros como metros e metros serem já ali. Para si, esse foi o princípio de tudo. Uma pureza irrepetível. Um tempo invejável. De volta aos dias em que estava tudo ainda por inventar, isso é que era maneira de viver. Bastava reparar em algo que nunca ninguém tinha visto e escrevê-lo. E para ver algo que nunca ninguém tinha visto bastava afastarmo-nos um pouco de casa. E, na verdade, nem era preciso tanto. Bastava sermos o primeiro a escrever aquilo que ainda ninguém tinha tido tempo ou tenacidade suficiente para escrever. Escrever era um luxo, sim. Mas a recompensa da escrita era imensa e certa.

Mas e agora? De que se escreve? Todas as metáforas já foram formuladas, todas as personagens com interesse estão descritas, todas as histórias importantes e reveladoras da maneira como vivemos e somos já há muito tempo que se esgotaram. Passaram-se já fases de técnica, fases de falta de técnica, fases de pureza de língua e fases de adulteração das palavras. Para quê continuarmos a enganar-nos, pareceu-lhe, se afinal já se inventou tudo o que poderia ser inventado? Continuamos a olear uma máquina avariada, que só nos produz variações sobre grandes temas já batidos, massacrados, explorados intelectualmente e (porque não?) comercialmente até à exaustão. A literatura acabou. Morreu. Foi-se. Foi bom enquanto durou. Fez-nos crescer, fez-nos sonhar, fez-nos grandes. Mas estagnou porque está tudo feito, tudo visto. Hoje, a escrita arrasta-se penosamente por computadores , por papéis virtuais que nada mais fazem do que perpetuar a ilusão. Tanta tecnologia, e afinal a escrita é ela mesma uma tecnologia obsoleta. Quanto mais informação temos, menos importa a variedade e a diferença. Já não é possível ser original. A originalidade é tão conhecida, tão explicável e tão banal quanto outra coisa qualquer. Não, a fonte esgotou.

“Declaro unilateralmente o fim da literatura.”

Terminando de digitar esta curta frase, terminou com a postura reflectiva inclinada sobre a mesa, e recostou-se na cadeira, contente. O esgar revelador de uma brancura de dentes que sua mãe muito lhe gabava, e que portanto nunca se coibiu de mostrar, abria caminho para o interior de si. E esse era povoado pela mais rica sensação que conhecia: o prazer da descoberta.

“Declarar o fim da literatura... Aposto que nunca ninguém se lembrou desta. Agora só tenho que descobrir uma história onde pôr isto.”

E se é assim com a literatura, porque não com tudo o resto? A música, meu deus, como não se faz nada de novo há décadas! Onde estão as rupturas, os estilos, os movimentos artísticos? Desapareceram para sempre. Não voltarão nunca porque não podem voltar. Porque há limites para a variedade, para a diferença. Não há revolução que nos valha. Atingimos um patamar, um máximo, um expoente do qual não nos é possível soltar-nos. Chocámos com a cabeça no tecto de vidro da criatividade humana. E doeu-nos, não doeu?

“Se calhar tecto de vidro é má ideia para uma imagem. Bom, vou escrever tudo isto e já se pensa.”

E assim, estava concebida a sua ideia original, do seu pensamento último, do seu argumento definitivo, da sua história que domina todas as outras. O decretar do fim da literatura sairia... em livro.

1 comentário:

  1. Talvez a originalidade esteja perdida.

    Resta-te não pensar sobre isso. E não agir por isso.
    Podes ser original assim. Não terás é a consciência de que és original.

    (E o que é afinal a originlidade se não essa falta de consciência?)

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