sábado, 16 de janeiro de 2010

Colocando as últimas calças na mala, comecei por fim a sentir o peso da decisão. Sabia que nunca me arrependeria, mas há vezes em que não é o arrependimento que pesa. A pressão que nos fixa os pés ao chão é a consciência de estarmos a desiludir as expectativas dos outros; é sabermos que estamos a rasgar um contrato, mas um contrato que eles próprios assinaram por nós.

Puxar para o lado o gelo fora da porta será bem mais fácil do que cortar o silêncio gelado com que me olham dentro desta casa. As gentes acumuladas faziam o soalho de madeira ranger, rivalizando o som aleatório com o coro de mulheres choramingando, enquanto os seus homens pressionavam com as mãos os seus ombros. E por toda a casa se soltavam vozes de desacordo. Perguntavam uns "o que vais fazer lá fora?", "o que pensas encontrar no meio do gelo?". Outros, em tom mais forte, afirmavam que "lá fora vais encontrar a tua morte", e que sou "o desgosto dos pais".

Mas eu não sou o primeiro. Recordo-me como miúdo de ter estado no meio da mesma multidão quando o meu irmão foi embora. Recordo-me de tê-lo visto na mesma posição onde eu estou agora, cuidadosamente a dobrar a roupa que metia na mala de cabedal castanho bem maior do que a minha. Recordo-me que os meus pais não se vieram despedir dele à porta, tal como hoje não se despedem de mim. Ele disse algo antes de sair que me perseguiu em todos os meus sonhos. Disse que "quando não encontramos o nosso lugar num espaço já feito, temos que ir para outro lugar e construir o nosso próprio espaço". E o terrível vazio que ele deixou nesta casa pequena nunca foi colmatado. Era ele quem me levava, enquanto os outros dormiam, para fora da porta, me pedia para não ter medo, me dizia que lá fora não havia nada que temer. Foi com ele que fiz o meu primeiro túnel pela neve e senti um ar diferente, desafogado na cara. É engraçado. Vivi toda a vida enclausurado pelo gelo, mas só quando escavei com ele até à superfície pude ver pela primeira vez nevar.

Naquele dia, era eu a partir. Mas o cenário é o mesmo. É o mesmo de cada vez que um de nós se aventura pelo meio da neve, sem saber o que encontrará. Já ninguém se lembra ao certo de quando terá a neve começado a cair. Talvez há duas, três gerações. Sabe-se que são já dezenas de metros de neve que nos separam da superfície. Sabe-se que esta casa foi construída para suster o peso do gelo e abrigar um grupo de pessoas que sobreviveram enterrados à neve contínua. Sabe-se que desde então, só um grupo de homens sai de casa para caçar e regressar com comida. Sabe-se que lá fora continua a nevar.

Apesar disso, naquele momento, algumas das mulheres continuavam a dizer-me que "a neve pode parar a qualquer momento", que "tudo vai melhorar em breve", e que então "teremos a nossa terra de volta". Gostava de lhes poder dizer que mesmo estando enterrado sem ver o sol, sem perspectivas que não sejam desejos, sem bem-estar que não seja resignação, ainda assim não é o meu carcereiro que me faz querer fugir desta prisão: são os meus companheiros de cela.

Por isso vesti o meu casaco, mesmo roto pelo passar do tempo. Recordei as viagens até à superfície que rotineiramente fazia com o meu irmão. E senti algo muito diferente. Esta viagem, é até ao fim. Voltei-me para a multidão, agrupada sobre o soalho da grande sala comum imediatamente junto da porta, e parei. Precisava de lhes dizer algo, mas não sabia bem o quê. De novo, as palavras do meu irmão assaltaram-me. E escaparam-se da minha boca, de uma forma muito mais cristalina do que ele algum dia sequer as pensou:

"A liberdade é a possibilidade de escolher a minha prisão."



1 comentário:

  1. É de facto estranho como o facto de desiludirmos os outros consegue pesar tanto (ou mais) do de passarmos uma vida a desiludirmo-nos a nós próprios.

    Essa é a maior luta que se trava, que ninguém vê. Porque te iludem com a liberdade. E é assim que te a tiram.

    Adorei este texto =)

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